Trabalhando de forma comparativa, pode-se compreender melhor como se comporta o rito do lava-pés na atual configuração da liturgia romana. Procedendo assim, é possível reconhecer que alguns ritos da Igreja contém caráter substitutivo, isto é, nem todos os fiéis executam a ação ritual, ficando a sua execução reservada a algum ministro ou grupo, enquanto os demais tomam parte dele de outra maneira, no caso do rito do lava pés, pelo canto das antífonas propostas no missal e pelo olhar. Os ritos que operam de forma substitutiva fazem supor que foram, em algum momento, executados por todos. A pesquisa sobre a gênese de determinado rito há de se preocupar com sua evolução.
(Leia também o artigo relacionado ao tema – Da mimese à anamnese: o lava-pés na liturgia romana)
Um exemplo para a comparação proposta é a procissão de entrada, no início da Celebração Eucarística. O rito recorda, ou evoca a Igreja toda, atraída por Cristo (cf. Jo 12,32), ou a Igreja peregrina, comunidade escatológica1 que não tem aqui a cidade de permanência, mas que busca a cidade futura (cf. Hb 13,14). Na abertura, os ministros adentram no recinto sagrado e rumam para o altar em procissão, enquanto toda a assembleia, do seu lugar, acompanha o rito visualmente e entoando o canto processional. Nessa forma atual, e de maneira mais frequente,2 o rito de entrada não contempla a participação de todos na procissão, embora as exceções nos remetam a algum momento em que o rito foi realizado por todos. O caráter substitutivo está em ser executado pelos ministros, ordenados e leigos que adentram em procissão. Em termos de participação, predomina uma “dinâmica especular”3 : a ideia é que olhando para os ministros que adentram, os fiéis reunidos contemplem a si mesmos enquanto Igreja e, dessa forma, participem do rito. Contudo, a execução foi restringida à uma parcela do Povo de Deus, os ministros.
Deveria ser evidente que os ritos com caráter substitutivo sejam celebrados com a viva consciência de que é o Corpo eclesial inteiro que celebra e não apenas aqueles que diretamente o executam. Contudo, essa consciência ainda permanece em déficit, seja por razões catequéticas, seja por questões de mentalidade ou de ideologia.4 Devem conter, como no exemplo oferecido, aberturas à participação dos demais, o que não feriria o seu sentido, mas manifestaria ainda mais sua importância e significação. Assim como o rito de procissão de entrada, que é alterado em algumas celebrações mais específicas (Ramos, Apresentação do Senhor, Entrada no catecumenato…), o rito do lava pés encontra suas aberturas, para uma maior participação, numa execução mais ampliada. As rubricas não indicam número de participantes; foi abolida a restrição aos fiéis do sexo masculino; no decreto da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, ressalta-se a preocupação com a manifestação do seu sentido a todos os que dele participam. Contudo, permanece determinado que o gesto de lavar é restrito ao presidente, e o de ser lavado, aos fiéis.5
Aberturas e restrições à manifestação do sentido
A abolição da restrição ao sexo masculino é, sem dúvida, outra abertura à manifestação do sentido aos participantes e uma renúncia a qualquer sombra mimética que se possa projetar sobre o lava pés |
A não determinação numérica colabora para uma compreensão menos mimética do rito. De fato, não é o número dos fiéis lavados que determina ou apresenta o seu sentido, mas o gesto do Senhor que, profeticamente, assume o lugar do servo e se propõe como modelo aos discípulos. Convém aqui situar o que vem a ser um gesto profético. Os profetas usavam recursos visuais para comunicar uma mensagem. Exemplos conhecidos são o casamento de Oseias com a prostituta Gomer para manifestar a infidelidade do povo para com Deus (cf. Os 1,3); a passagem subterrânea à muralha que Ezequiel deve cavar e por ela passar com seus pertences para indicar a situação que o povo sofreria como exilado e como fugitivo da própria cidade (cf. Ez 12,1-7); os inúmeros gestos de Jeremias (quebra do vaso de argila, cangaia aos ombros diante do rei, cingir-se com cinto que depois se estragaria)…6 O gesto profético de Jesus,7 ao assumir o lugar inferior dos escravos que lavavam os pés dos convidados, tem igualmente sentido soteriológico (salvífico). Em sentido profético, ele inverte a lógica usual e propõe uma nova mentalidade que deverá reger a vida da comunidade dos seus discípulos: de senhores e servidos a servidores uns dos outros, a exemplo do Mestre (cf. Mc 10,42-45). Em sentido soteriológico, Jesus simboliza com seu gesto de lavar os pés dos discípulos, o seu despojamento em favor da vida dos demais. Em ambos os sentidos, o gesto é proposto como modo de relação uns para com os outros (cf. Jo 13,14).
A abolição da restrição ao sexo masculino é, sem dúvida, outra abertura à manifestação do sentido aos participantes e uma renúncia a qualquer sombra mimética que se possa projetar sobre o lava pés. A decisão tem forte impacto sobre o gesto, que passa a adquirir um sentido mais explicitamente anamnético, memorial, pois não se trata de representar dramaticamente o gesto de Jesus, mas de realizá-lo em seu valor salvífico. Na era apostólica, parece ter havido algum sinal de que as mulheres praticavam o gesto e de que esse era condição para o seu ingresso na ordem das viúvas (cf. 1Tm 5,9-10). Não há dúvidas que fosse sinal de hospitalidade e de acolhida. Pode-se até hipnotizar que as viúvas deviam exercer a capacidade de servir, de doar a vida, de se esvaziarem, ao modo do Senhor. Pouco se sabe, contudo, se o gesto, executado por elas, tinha valor litúrgico. Mas ao ser proposto como condição para tomar parte de um grupo distinto na comunidade cristã, deu-se a ele uma notável importância. Outro eloquente exemplo de que o rito tenha sido assumido por mulheres encontra-se relatado na Legenda de Santa Clara de Assis:
Com freqüência lavava e beijava os pés das serviçais quando voltavam de fora. Uma vez, estava lavando os pés de uma delas e, quando foi beijá-los, a irmã não suportou tanta humildade, puxou o pé de repente e bateu com ele no rosto de sua senhora. Esta voltou a tomar o pé da serviçal com ternura e lhe deu um beijo apertado sob a planta.8
Não é possível nesta tratativa, avaliar se o lava-pés operado pelas viúvas, ou por Santa Clara, tivesse sentido litúrgico-celebrativo. Contudo, o gesto não perde seu vínculo com o sentido profético e soteriológico do Senhor.
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1Por eschaton se compreende o termo e fim, ou ainda todas as realidades futuras. Escatológicas são todas as realidades relacionadas com o fim: a morte, o fim dos tempos, a parusia, a segunda vinda de Cristo, a glorificação dos filhos e filhas de Deus em Cristo. Comunidade escatológica é aquela que está orientada para essas realidades futuras, cf. Cl 3,1-4.
2Convém recordar que a forma mais habitual desse rito não exclui outras formas de celebrá-lo que incluem a participação de todos os fiéis. O exemplo mais vivo disso é a procissão solene no domingo de ramos. Outros exemplos: a procissão no dia 02 de fevereiro e alguns ritos ligados ao Batismo, conforme se pode verificar no Ritual de iniciação cristã de adultos.
3Especulum, do latim, significa em português, espelho.
4Me refiro à ideologia do clericalismo, que estratifica o povo de Deus em membros mais e/ou menos importantes, alegando motivos de ordem ministerial. Segundo tal forma de pensar, os ministros que adentram em procissão, o fazem por que são ministros e não executores de um rito que diz respeito à toda a comunidade.
5 No evangelho Cristo deixa um mandamento específico: lavar os pés uns dos outros (cf. Jo 13,14).
6Cf. SEUBERT, A. Como entender a mensagem dos profetas. Introdução pastoral aos profetas. São Paulo: Edições Paulinas, 1992, pp. 32-36.
7Sobre o fato de o gesto de Jesus se configurar como um gesto profético ao modo dos antigos profetas, concordam alguns estudiosos como, por exemplo, LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do evangelho segundo João, vol III. São Paulo: Loyola, 1996, pp. 23.
8Legenda de Santa Clara Virgem, 12. Encontrado em: www.centrofranciscano.org.br/index.php?option =com_fontes&view=leitura&id=963&parent_id=950, extraído no dia 19 de fevereiro de 2016, às 11hs39m
Pe. Danilo César
Liturgista