Falar em Missa de Cura e Libertação ou de qualquer outra ação litúrgica com vistas a conseguir a cura de enfermidades e doenças põe em questão a dimensão terapêutica do rito. No artigo anterior afirmei que a fé possui, necessariamente, uma dimensão terapêutica. Consequentemente, os ritos pelos quais a fé se faz fato deve possuir tal característica. Mas, em que sentido isso é possível, sem corrermos o risco de reduzir as celebrações da Igreja à condição de medicamento quase num sentido farmacológico.
A problemática é bem antiga. Há quinze anos a Congregação para a Doutrina da Fé, cujo prefeito era o então Cardeal Ratzinger, atual Papa Emérito Bento XVI, lançava uma instrução denominada “Sobre as orações para alcançar de Deus a cura”. Na introdução se lê: “A oração que implora o restabelecimento da saúde é, pois, uma experiência presente em todas as épocas da Igreja e naturalmente nos dias de hoje. Mas o que constitui um fenômeno sob certos aspectos, novo, é o multiplicar-se de reuniões de oração, por vezes associadas a celebrações litúrgicas, com o fim de alcançar de Deus a cura. Em certos casos, que não são poucos, apregoa-se a existência de curas alcançadas, criando assim a expectativa de que o fenômeno se repita noutras reuniões do gênero. Em tal contexto faz-se por vezes apelo a um suposto carisma de cura. Essas reuniões de oração feitas para alcançar curas põem também o problema do seu justo discernimento sob o ponto de vista litúrgico, nomeadamente por parte da autoridade eclesiástica, a quem compete vigiar e dar as diretivas oportunas em ordem ao correto desenrolar das celebrações litúrgicas.”[1]
A preocupação se desdobra em duas direções: a) a compreensão propriamente terapêutica da fé, o que alude a um problema eminentemente teológico e doutrinal, sobre o qual acenamos no artigo anterior; b) a questão litúrgica, uma vez que o contexto para que esta compreensão da fé tome forma e torne-se fato, são as celebrações da Igreja.
De início é importante ressaltar que o magistério da Igreja reconhece o direito e o costume de, em diversas épocas, o fiel aproximar-se do Senhor para suplicar-lhe a cura de suas enfermidades e doenças, o consolo no sofrimento, o bálsamo para sua dor. Mas, de imediato acrescenta que as doenças e enfermidades possuem um sentido próprio no contexto da História da Salvação e estão relacionadas de uma maneira muito particular ao Mistério de Cristo. “A dor e Deus não são contraditórios e a sua coerência é um conteúdo fundamental da fé”, escreve Ravasi.[2] De fato, no ritual da Unção dos Enfermos, quem preside, ao suplicar a cura na oração pós-unção, não se limita a designar a extirpação dos males, mas ocupa-se com estabelecer um nexo de sentido daquela enfermidade ou doença com a paixão do Senhor e o mistério da sua morte de cruz e ressurreição. Veja-se, um exemplo: “Senhor Jesus Cristo, que, para resgatar os homens e curar os doentes, quisestes assumir a nossa natureza humana, olhai propício para este vosso servo, que tanto necessita da saúde da alma e do corpo; restabelecei com o vosso poder e consolai com a vossa ajuda aquele que ungimos em vosso nome com a santa Unção, para que consiga levantar as forças e vencer o mal (e concedei àquele que fizestes participante da vossa Paixão a graça de confiar na eficácia dos seus sofrimentos). Vós que sois Deus com o Pai na unidade do Espírito Santo.”
O que está em cheque aqui é o próprio conceito de cura e, consequentemente, o que se tem em mente quando se afirma e alardeia que os ritos da Igreja curam. É importante salientar que a doença, na História da Salvação, não tem apenas conotação negativa. A própria Instrução citada acima fala disso. Ao comentar trechos do livro de Jó que abordam sobre o sofrimento humano, afirma: “A doença, embora possa ter uma conotação positiva, como demonstração da fidelidade do justo e meio de reparar a justiça violada pelo pecado, e também como forma de levar o pecador a arrepender- se, enveredando pelo caminho da conversão, continua, todavia a ser um mal.”[3]
O teólogo liturgista Eugenio Sapori conclui que a Instrução, seja em seus aspectos doutrinais ou práticos, insiste sobre quanto a doença e a cura necessitam serem vistas sob o aspecto do anúncio da vitória do Reino de Deus sobre o mundo, que necessariamente conduz o ser humano à saúde integral.[4] Renato Zanchetta, médico e doutor em teologia (liturgia pastoral) sustenta que o mundo, altamente controlado e mediado pela técnica, fez-nos centrar a atenção nas enfermidades e doenças indo aos limites das possibilidades, conduzido as pessoas ao esquecimento do término da vida como uma característica humana. E, citando Leonardo Boff sugere de tomar o termo “cura” acentuando o seu significado mais amplo e mais atento à pessoa. Não tanto por atenção no aspecto “farmacológico” dos processos terapêuticos (inclua-se aqui os ritos), mas no sentido e abrangência da cura em relação ao ser humano e seu destino. Vale sua pergunta: “nessa nova atitude global (tecnicista), a cura, é fronteira, se identifica ou faz parte integrante da salvação?”[5]
Neste sentido, voltando à Instrução sobre as orações para obter de Deus a cura, pode-se dizer, com tranquilidade, que rezar a Deus suplicando-lhe auxílio no sofrimento e cura nas situações de enfermidade tem seu mérito por revelar a fidelidade do crente, sua humildade perante o Criador e a abertura e disposição para acolher a vontade dEle para sua vida, mesmo no contexto de sofrimento e morte. Mas, imediatamente esclarece: “É óbvio que o recurso à oração não exclui, antes encoraja, o emprego dos meios naturais úteis a conservar e a recuperar a saúde e, por outro lado, estimula os filhos da Igreja a cuidar dos doentes e a aliviá-los no corpo e no espírito, procurando vencer a doença. Com efeito, ‘reentra no próprio plano de Deus e da sua Providência que o homem lute com todas as forças contra a doença em todas as suas formas e se esforce, de todas as maneiras, por manter-se em saúde.’ [6]
A mesma Instrução, que admoesta cristãos e cristãs a suplicarem a Deus pela saúde integral do ser humano, conclui a parte Doutrinal (capítulo I) afirmando claramente que essas orações – litúrgicas ou devocionais – não devem perder seu direcionamento primeiro. Citando como exemplo os Santuários, a Instrução adverte: “Nos santuários são também frequentes outras celebrações que, por si, não se destinam especificamente a implorar de Deus graças de curas, mas que nas intenções dos organizadores e dos que nelas participam têm, como parte importante da sua finalidade, a obtenção de curas. Com esse objetivo, costumam fazerem-se celebrações litúrgicas, como é o caso da exposição do Santíssimo Sacramento com bênção, ou não litúrgicas, mas de piedade popular, que a Igreja encoraja, como pode ser a solene reza do Terço. Também essas celebrações são legítimas, uma vez que não se altere o seu significado autêntico. Por exemplo, não se deveria pôr em primeiro plano o desejo de alcançar a cura dos doentes, fazendo com que a exposição da Santíssima Eucaristia venha a perder a sua finalidade; essa, de fato, «leva a reconhecer nela a admirável presença de Cristo e convida à íntima união com Ele, união que atinge o auge na comunhão sacramental”.[7] Aqui começamos a tratar da questão propriamente ritual, que desdobraremos no próximo artigo.
1CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Sobre as orações para alcançar de Deus a cura. Arquivo PDF,disponível em http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20001123_istruzione_po.html. Acesso dia: 14 de janeiro de 2016.
2RAVASI, Gianfranco. O que é o homem? Sentimentos e laços humanos na Bíblia. Prior Velho (Portugal): Pauinas, 2011, p. 70.
3CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Sobre as orações para alcançar de Deus a cura, Cap I, 1.
4Cf. SAPORI, Eugenio. Dimensione terapêutica del rito. Uma realtà posibile. In. Rivista Liturgica n. 98. Padova: Edizione Messaggero, p. 77.
5ZANCHETTA, Renato. Malattia, Salute, Salvezza. Il Rito come terapia. Padova: Edizioni Messaggero, 2004, p. 40.
6CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Sobre as orações para alcançar de Deus a cura, Cap 2.
7CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Sobre as orações para alcançar de Deus a cura, Cap 2.