A espiritualidade é o centro medular da vida de uma pessoa que abraça uma religião ou, na atualidade, dos sem religião que, porém, não abandonam a fé e o transcendente como princípio da realidade. A fé fenece sem espiritualidade. Esta é fundamento e alimento da experiência religiosa em geral e também ponto de tensão para a vida religiosa, obrigada a pensar-se e rever-se ao mergulhar na experiência espiritual que a fundou. A espiritualidade é a consciência crítica da vida religiosa. Esta pode distanciar-se das grandes intuições fundadoras de sua estrutura e organização sem o refinamento da espiritualidade devidamente vivida como sabedoria, discernimento e aprofundamento do sentido primeiro da experiência religiosa.
Por essa razão, a espiritualidade não é algo abstrato, mas concreto, palpável, porém passível de ser confundida com formas religiosas satisfeitas em ajustar-se às medidas de nossas necessidades imediatas. Enquanto concreta, podemos “vê-la” nas práticas de grupos e de indivíduos, em múltiplas expressões rituais, orações e práticas cotidianas embrenhadas na vida social. Essa concretude, no entanto, pode enrijecer-se em formas caducas de viver a fé, de manifestar o transcendente, fazendo pensar a espiritualidade como um conjunto de ritos e menos como relação e vivência de uma experiência radical do sentido de Deus com o seu significado para vida pessoal e coletiva. É quando a religiões e suas formas se tornam mais importantes do que aquilo que as gerou. Passam a estar a serviço dos interesses pessoais de alguns e motivam a acomodação das massas, dentro de uma visão mágica da realidade e de sua relação com Deus.
Atentos a isso dividimos nossa meditação em dois momentos. Primeiro, vamos procurar entender, ao referir-se à espiritualidade, a expressão “mundanismo espiritual” usada pelo Papa Francisco na Exortação Apostólica Evangellii Gaudium (EG). E depois, inspirados no apelo que vem desde a Conferência de Aparecida, meditaremos sobre a possibilidade de uma “conversão espiritual”.
Mundanismo espiritual
Do número 93 a 97, na Evangelli Gaudium, o Papa Francisco põe em relevo observações sobre o mundanismo espiritual. Numa definição simples, o Papa esclarece que aquele “se esconde por detrás de aparência de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja” e seu objetivo é “buscar, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal” (EG, n° 93). O que parece ser uma espiritualidade de entrega e amor às pessoas e à Igreja, na verdade é busca por si mesmo a descartar o desvelamento de si para si, enredando-se na própria satisfação dos desejos de poder e de glória.
O mundanismo espiritual vive da simulação de santidade. Evita qualquer coisa que possa tornar-se de conhecimento público e manchar a própria imagem, não pelo apreço das virtudes, mas pelo apreço a si mesmo. É por isso mesmo perigoso e sutil. É uma lógica pautada no poder-poder a despeito do poder-serviço. Não procura uma vida santa, como alguns pensam. Procura o poder pelo feitiço da imagem produzida de si mesmo. E é assim mais perigoso do que outras formas de mundanismos morais, visto estar oculto pelas aparências. Seu veneno é beber o poder deixando de viver o poder de servir, que cura e nasce do amor. Consciente e inconscientemente esforçar-se por estar em evidência, ser uma estrela e encher o próprio eu de confortantes aplausos.
Para descobrir essa situação o Papa Francisco apresenta duas maneiras de viver a experiência religiosa segundo o mundanismo espiritual. São, elas, o fascínio do gnosticismo e o neopelagianismo autorreferencial (EG 94). Pela forma como o Papa descreve essa questão, vê-se que não é algo para ser tomado como instrumento para analisar os outros, mas a nós mesmos.
Lutar contra o mundanismo espiritual é enfrentar a possibilidade de nos roubarem o Evangelho e nos oferecerem no lugar as velhas artimanhas do poder. É dizer não à corrupção com aparência de bem |
Apresenta o Papa o fascínio do gnosticismo como fechamento subjetivista, no qual a pessoa se enclausura em si mesma, na imanência de sua razão e de seus sentimentos. O interesse recai sobre experiências, raciocínios e sentimentos vivenciados como luzes, nos quais se dependura uma falsa segurança, que transmite à pessoa uma ideia e sensação de estar em nível avançado e superior em relação aos demais. Fé e virtudes são associadas ao requinte intelectual e à perspicácia de alguns de poderem desvendar mistérios escondidos a outros, ignorantes e submergidos na escuridão.
Já o neopelagianismo autorreferencial e prometeuco estende o fascínio do gnosticismo, pois relacionados entre si alimentam-se reciprocamente. Sua estrutura está assentada sobre a confiança em si (só em si) e o sentimento de grandeza frente aos outros. A certeza desta forma de viver o mundanismo sustenta-se por acreditar estar cumprindo bem normas, ser fiel a um estilo de ser católico sentido como segurança doutrinal, criando um “um elitismo narcisista e autoritário, em que, em vez de evangelizar, analisam-se e classificam-se os demais e, em vez de facilitar o acesso à graça, consomem-se as energias a controlar” (EG 94).
A consequência do mundanismo espiritual é dominar os espaços da Igreja e a própria Igreja. Segundo Francisco, isso acontece por meio do “cuidado exibicionista com a liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja”, todavia, sem se preocupar que o “Evangelho adquira uma real inserção no povo fiel de Deus e nas necessidades concretas da história” (EG, n° 95). Adverte o Papa que a Igreja torna-se posse de poucos e peça de museu. Ainda se exerce esse domínio do mundanismo espiritual via uma prática pautada pelo funcionalismo empresarial. Aqui o fiel se gaba de seu trabalho e sua agenda cheia de compromissos, com estatísticas, planejamentos, avaliações e centrada numa visão de Igreja como organização. Neste esquema Cristo e o povo ficam ladeados. Conta para essa forma de pensar o prestígio da Igreja organização. Assume-se com isso o estéril funcionalismo empresarial que esvazia a fé cristã de seu sentido aberto para o drama dos esquecidos e necessitados, para um mundo carente de salvação. Impera a autocomplacência egocêntrica.
O mundanismo espiritual substitui a salvação ofertada por Cristo pela vanglória pessoal. O autor da salvação deixa de ser Deus para ser o próprio sujeito. A Graça fica esvaziada, pois a salvação passa a ser compreendida como prêmio pelo esforço pessoal. Não deixa a força do Evangelho agir. A imagem da Igreja que está na cabeça do mundanismo é uma poderosa organização, que procura expansão na contramão de uma Igreja serva, solidária com o destino dos mais fracos, de luta constante pela vida. Esquece que a glória da Igreja é o Martírio por fidelidade ao seguimento de Cristo. Às vezes até usa a linguagem da Cruz, no entanto, não se confronta com a realidade que ela representa, com a mística do esvaziamento e da entrega (EV, n°96).
Lutar contra o mundanismo espiritual é enfrentar a possibilidade de nos roubarem o Evangelho e nos oferecerem no lugar as velhas artimanhas do poder. É dizer não à corrupção com aparência de bem, camuflada na solenidade de palavras elegantes, que exortam e censuram, manipulam e desqualificam, e fecham os corações de quem as proclama nas suas próprias ilusões farisaicas (97). Sair dessa cilada, feita até pela própria pessoa, pede o caminho da conversão espiritual, indo às fontes onde nasce o rio espiritual da fé cristã.
Conversão espiritual
Da Quinta Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, Aparecida, vem com clareza o convite para realizar na Igreja a conversão pastoral, com firme decisão de impregnar as estruturas eclesiais de espírito missionário e evangélico (Conferência de Aparecida, n° 365-379). A conversão pastoral, por outro lado, não começa sem conversão da pessoa, que se converte diante de um chamado para viver o amor, alimentado por uma espiritualidade que questiona e descentraliza o indivíduo. A espiritualidade converte quando cria condições de estabelecer um diálogo transformador da pessoa com Deus. Conversão pastoral sem espiritualidade convertida é corpo sem alma. Pode acabar em outro modelo administrativo sem grandes consequências para o crescimento das pessoas e da Igreja.
Converter-se, então, é assumir a condição de discípulo frente às ações, palavras e ensinamentos do mestre descritos nos Evangelhos O tratado espiritual a ser meditado é a vida de Jesus |
A partir da experiência cristã da fé, converter-se espiritualmente é tomar a vida de Jesus como referência. E isso não é voltar-se para a cartilha de folhas retorcidas dos ensinamentos que nos passaram sobre Ele. É estar de alguma forma, por difícil que seja, como se fosse a primeira vez diante de alguém desconhecido, desafiante e com tudo a oferecer, mesmo sabendo que os próprios evangelhos já são interpretações sobre sua pessoa. Assim, quem se propõe seguir o mestre não pode deixar de pôr alguma desconfiança sobre a forma como o segue. Certezas demais sobre o nosso jeito de viver a fé são um perigo, pois podemos ser muitos bons ou maus sem sabermos, dependendo da forma como estruturamos dentro de nós o que recebemos como espiritualidade. Neste conturbado mundo e na sua história está à vista de quem quiser os danos provocados pelo cristianismo e as religiões em geral.
Converter-se, então, é assumir a condição de discípulo frente às ações, palavras e ensinamentos do mestre descritos nos Evangelhos. O tratado espiritual a ser meditado é a vida de Jesus. Nele não encontraremos métodos espirituais. Vamos nos deparar com os passos de uma pessoa dentro de um contexto de conflito, de pobreza, alegrias e sofrimentos. Iremos ver como Jesus se relacionou com autoridades religiosas, políticas e o povo simples, como se posicionou em situações diversas e falou de Deus, seu Pai, ao mundo. Não teremos passos organizados para rezar, mas uma vida concreta para rezar e interiorizar, por meio de uma figura que se desenha diante do olho interior da fé, segundo os relatos que até nós chegaram. As condições para que isso aconteça são possíveis se houver abertura. É precisar perfurar as sólidas certezas que temos para rejuvenescer perante o frescor da vida de Jesus. Pelo percurso da meditação sobre Jesus e busca por conversão da espiritualidade é possível que sintamos a necessidade de tirar o invólucro que está sobre o próprio Jesus, feito de muitas camadas. Interessa conhecer Jesus mais do que aquilo que fizeram com Ele.
A conversão espiritual se dá numa certeza aberta ao fato de que Jesus é caminho, verdade e vida (Jo 14, 6). Não o caminho determinado, fechado. Mas o caminho aberto à surpresa que é Deus e de sua atuação na nossa vida e da humanidade. O caminho da conversão espiritual não é uma doutrina esquemática para se chegar ao Pai. Antes é a doutrina da vida de Jesus para se chegar ao Pai. Sua vida se oferece como caminho e doutrina, como verdade a ser entendida pela humanidade. Não é a verdade de um conceito. É a verdade da vida vivida como entrega ao projeto do Pai em favor dos irmãos. A vida é, portanto, o resultado desse caminho a ser feito com Jesus, com o ensinamento de sua vida, no meio de questões novas a se apresentar aos caminhos da fé. Ganha a vida (é salvo e chega ao Pai) quem mais que entender um ensinamento global sobre tudo for capaz de fazer o caminho da vida Jesus como verdade que leva à vida no meio de suas contradições, de suas perguntas e tramas cotidianas.
A conversão espiritual implica um coração disposto a enfrentar a si mesmo confrontando-se com o mestre. É viver a vida de Jesus como oração e a oração de Jesus (Pai-nosso) como vida. Significa estar em estado de vigília, atentos à novidade de Deus em nossa vida, caminhando pela verdade da vida de Jesus, rumo à plenitude da verdade que é vida para todos, em Deus. De forma simples, é não ser mestre, pai, guia (Mt 23, 9-11). É sermos irmãos e irmãs. A conversão espiritual acontece quando deixamos Jesus ser nosso mestre, num imprevisível caminho no qual a única previsibilidade é a certeza de que nossa missão é amar.
Magno Marciete do Nascimento Oliveira
Administrador paroquial da Paróquia São Domingos