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Ato Penitencial ““ Acolher a solidariedade de Deus

No tempo da quaresma a Igreja incentiva os fiéis a procurarem o sacramento da reconciliação (confissão). É um mandamento da Igreja e uma boa recomendação! O Apóstolo Paulo exorta os fiéis a se deixarem reconciliar com Deus (cf. 2Cor 5,20). Contudo, a reconciliação é um processo que deve supor o reconhecimento da própria condição pecadora, da própria fragilidade. O ser humano é suscetível ao pecado. Fora ou dentro do tempo da Quaresma existe um rito que sempre nos recorda isso: o ato penitencial. Mas no tempo quaresmal esse rito ganha especial relevo, pois a revisão da vocação batismal inclui, por certo, a dimensão penitencial da vida cristã.

Antes do Concílio, não existia o ato penitencial na missa. Existiam as chamadas “apologias” ao pé do altar, proferidas pelo presidente da celebração. Numa ou noutra comunidade, os fiéis, mais por costume adquirido do que seguindo uma prescrição ritual, acompanhavam o momento cantando seus cantos penitenciais. No atual rito, essas apologias foram desmembradas, reformuladas e adaptadas ao contexto celebrativo e comunitário. O esquema foi simplificado, mas ganhou maior consistência, pois valorizou-se os elementos que, na forma antiga, estavam sobrepostos e confusos. Eram também restringidos à pessoa do ministro ordenado. Agora, porém, está integrado ao ordo, isto é, ao rito da Igreja que inclui todo o povo de Deus e não apenas os padres.

A estrutura geral inicia-se pelo convite do presidente, seguida do breve silêncio, a fórmula de confissão e a conclusão, chamada impropriamente de “absolvição”1 . As fórmulas de confissão variam. Os dois primeiros modos são fixos, o terceiro modo oferece um texto tripartido em tropos2 . Esses tropos elogiam a misericórdia de Deus e desenvolvem a aclamação Kyrie eleison, que em português foram traduzidas por “Senhor, tende piedade”3 . Os tropos, a partir do ambiente musical aprofundam o sentido dessa piedade, ampliando por meio de versos poéticos aquilo que a brevidade da forma participial contém.

Uma confissão de fraqueza

Uma rainha, chamada Ester, com uma nobre missão de salvar o seu povo e “temendo o perigo de morte que se aproximava”, dirige a Deus uma súplica4 :

“Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacó, tu és bendito. Vem em meu socorro, pois estou só e não tenho outro defensor fora de ti, Senhor, pois eu mesma me expus ao perigo.  Senhor, eu ouvi, dos livros de meus antepassados, que tu libertas Senhor, até o fim, todos os que te são caros. Agora, pois, ajuda-me, a mim que estou sozinha e não tenho mais ninguém senão a ti, Senhor meu Deus.Vem, pois, em auxílio de minha orfandade. Põe em meus lábios um discurso atraente, quando eu estiver diante do leão, e muda o seu coração para que odeie aquele que nos ataca, para que este pereça com todos os seus cúmplices. E livra-nos da mão de nossos inimigos. Transforma nosso luto em alegria e nossas dores em bem-estar”.

Três elementos podem ser deduzidos da oração de Ester: 1- a rainha recorre a Deus, seu único defensor, a quem reconhece e recorda como protetor do seu povo; 2- tem aguda consciência de que se expôs ao perigo, a si e aos seus; 3- pede a Deus que transforme a situação de extrema dificuldade em situação de vida.

O reconhecimento da fraqueza é acompanhado do reconhecimento da foça e da exclusividade de Deus como o único capaz de transformar sua situação de miséria.

Deus é compassivo

O Antigo Testamento demonstra a imagem de um Deus severo e punitivo que pouco a pouco evolui para a imagem de um Deus paciente e compassivo. A oração de Moisés acena esse movimento:

Iahweh! Iahweh…
Deus de ternura e de piedade,
lento para a cólera,
rico em graça e fidelidade;
que guarda sua graça a milhares,
tolera a falta, a transgressão e o pecado,
mas a ninguém deixa impune
e castiga a falta dos pais nos filhos
e nos filhos dos seus filhos,
até a terceira geração5.

 O Parceiro da Aliança é invocado como “compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor”, que não prolonga o seu rancor e nem trata os seus fiéis conforme suas faltas (cf. Sl 103,8-10). O mesmo salmo parece “retocar” a oração de Moisés, mostrando mais o amor e a compaixão do que sua cólera:

Mas o amor de Iahweh!…
existe desde sempre
e para sempre existirá
por aqueles que o temem;
Sua justiça é para os filhos dos filhos,
para os que observam sua aliança
e se lembram de cumprir suas ordens6.

Sua compaixão chega a ser comparada à mãe incapaz de ignorar o sofrimento de seus filhos (cf. Is 49,15), ou ao amor resiliente do marido de uma prostituta (cf. Os 3,1-3).
Contudo, o ápice da compaixão de Deus demonstra-se na encarnação do seu Filho. A encarnação é dádiva e prova de amor aos pecadores (cf. Rm 5,8; 8,32). Nele Deus conhece por dentro a fraqueza humana, tornando-se Servo obediente e assumindo sobre si as nossas culpas.

Compaixão, a solidariedade de Deus

O mesmo verbo grego empregado na aclamação Kyrie eleison está na raiz da palavra esmola (elemosina). Dar esmola é dar ao outro a compaixão, em sentido profundo, sentir com o outro. Deus sente com a humanidade a partir do seu Filho que assume a nossa carne. Seu Filho é sua dádiva solidária que alcança a nossa miséria e a nossa pequenez. Paulo chegará a afirmar que ele foi feito pecado por Deus para nos redimir, embora não houvesse pecado (cf. 2Cor 5,2).

Em questão: a compaixão de Deus

A advertência do Missal aponta na direção dos atributos divinos e da sua ação solidária: Deus se move na direção do pecador, dando-lhe o seu amor, a sua elemosina (compaixão, esmola). O ato penitencial, mais que recordar pecados, recorda a compaixão do Deus de Jesus Cristo, que em seu Filho ergue a todos da morte. O reconhecimento da frágil condição da humanidade se , pois, à luz daquilo que Deus é, pois anterior ao pecado está a graça, o próprio ser do Deus compassivo.

Em qualquer tempo, mas sobretudo na Quaresma, o ato penitencial suscitará a consciência desse amor capaz de mover à reconciliação com Deus e com os irmãos. A execução do rito, a escolha dos cantos e da fórmula, terão em vista, principalmente, essa compreensão do Deus que com seu amor dignifica a humanidade.

1O termo é tão inapropriado que o próprio missal esclarece que o ato penitencial não tem o mesmo valor do sacramento da penitência (cf. IGMR, 51).
2Tropo é uma adição poética que precede ou sucede uma antífona, ou aclamação, desenvolvendo-lhe um aspecto.
3A tradução não diz o real significado da expressão. Kyrie é vocativo de Kyrios (ó Senhor). Eleison é uma forma participial de eleeô, que significa “ter compaixão”. A forma participal de um verbo cumpre a função de adjetivar, de dar qualidade. Assim, a expressão Kyrie eleison tem o sentido de “Senhor, vós sois piedade” que combina perfeitamente com o tropo que lhe dá desenvolvimento.
4Opto pela versão litúrgica, proclamada na quinta feira da primeira semana do tempo da Quaresma.
5Ex 34,6-7.
6Sl 103,17-18.

Pe Danilo César
Liturgista

 

 



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