Acostumados com o fato de termos diversos livros litúrgicos à disposição, podemos ter a falsa impressão de que sempre foi assim. Na verdade, eles resultam de um Movimento Litúrgico: o surgimento da teologia litúrgica como disciplina teológica e o Concílio Vaticano II, que tivemos a alegria de voltar à pluralidade e riqueza de formulários para guiar nossa oração e por ela nos estimular e firmar na fé, como seguidores de Jesus.
Os livros litúrgicos não são apenas instrumento para que as celebrações decorram em sintonia com a ortodoxia e ortopraxia da Igreja de rito romano. São, na verdade, o testemunho precioso da transmissão da fé cristã que, até aqui, acumulam quase dois milênios de história. As orações que encontramos, os cantos sugeridos e os ritos apresentados nesta literatura revelam a criatividade da Igreja para dar a conhecer o Mistério de Cristo e fazer-nos participantes dele. São verdadeira fonte de saber teológico, enquanto forma ritual da fé e do dogma. Revelam a resposta da Igreja aos apelos da Palavra de Deus que a Sagrada Escritura traz registrada em suas páginas. Enfim, são livros para gerar e manter a vitalidade da comunidade cristã em seu serviço de amor pelo mundo, na esteira do discipulado de Jesus de Nazaré.
No princípio, isto é, nos primeiros dois séculos da fé cristã, a Igreja não dispunha de livros especificamente cristãos para as celebrações do Mistério Pascal de Cristo. Foi um tempo de fina e fiel criatividade, em que se mesclava a continuidade com a maneira de rezar dos nossos irmãos judeus e também se rompia e acrescentava elementos de índole especificamente evangélica. Assim, nesta época, a Sagrada Escritura era a principal fonte para o culto litúrgico, em especial o Antigo Testamento. A partir dele, com a tradição oral, a vida, morte e ressurreição de Jesus foi interpretada à luz das promessas de Deus ao povo de Israel. Paulatinamente, foi-se descortinando o sentido pascal da morte de Jesus, de modo que sua ressurreição constituiu o ápice da Revelação de Deus e o elemento identitário da fé cristã. Também a pregação apostólica, a memória dos primeiros seguidores de Jesus foi importante neste período. No que se refere à celebração eucarística, não havia o que hoje conhecemos por Missal.
O relato mais antigo da Ceia de Jesus na qual ‘tradicionalmente’ se diz que ele instituiu o memorial eucarístico foi registrado e transmitido por São Paulo. Encontramos estes textos na primeira Carta aos Coríntios, na qual o Apóstolo descreve a ceia eucarística da comunidade (10,16-17) e depois a sua raiz, isto é, o banquete de Jesus no cenáculo (11,23-25). Depois disso, temos como documento muito importante ainda do século I a Didaché 1, que nos apresenta a Eucaristia dominical explicada dentro da lógica da Birkat há Mason (bênção da mesa) dos nossos irmãos judeus. Nela encontramos – na opinião de alguns estudiosos – a forma mais básica do que depois se tornou a Oração Eucarística:
“Nós te damos graças, Pai Santo, pelo teu santo nome, que fizestes habitar em nossos corações, e pelo conhecimento, fé e imortalidade, que nos revelaste por Jesus, teu servo. Glória a Ti pelos séculos. Foste Tu, Senhor Onipotente, que criaste o universo para glória do teu nome e que deste aos homens comida e bebida a fim de que, apreciando estes bens, Te dessem graças; mas a nós concedeste-nos um alimento e uma bebida espirituais e a vida eterna por meio do teu servo Jesus. Acima de tudo, nós Te damos graças porque és poderoso. Glória a Ti pelos séculos. Lembra-te, Senhor, da tua Igreja, livra-a de todo o mal e torna-a perfeita no teu amor. Reúne dos quatro ventos, santificando-a no teu reino, que para ela preparaste. Porque teu é o poder e a glória pelos séculos. Venha a graça e passe o mundo. Hosana ao Deus de David. Se alguém é santo, aproxime-se, quem o não é, faça penitencia. Maranatha. Amém.”[1]
Foi São Justino, no século II, quem legou à Igreja a mais antiga descrição sistemática que dispomos da eucaristia dominical. Nela ele insiste no elemento da criatividade fiel de quem preside, bem como nas duas partes que compõem o culto no Dia do Senhor: uma liturgia da Palavra e uma Ação de Graças com participação convivial à Mesa. É assim que “o sacrifício pascal de Cristo” entregue ao Pai, conforme reza uma de nossas Anáforas contemporâneas, nos foi transmitido na antiguidade.
No século III, temos o registro da chamada Tradição Apostólica na qual ainda se fala do lugar que a criatividade eucológica e ritual tinha em meio à comunidade de fé. Nela encontramos, por exemplo, uma antiga descrição do que seria mais tarde a Vigília Pascal. Depois temos, no final do século IV, as Constituições Apostólicas relatam a chamada Eucharistia Mystica que retoma a Didaché e a amplia um pouco. Assim, vai-se formando de maneira mais o que hoje chamamos de prece eucarística propriamente dita. Mas, é bom inculcar, que até aqui não temos livros para o uso litúrgico propriamente dito, que orientem e prevejam especificamente a ordem da celebração. Temos fontes que são usadas à critério de quem coordena a comunidade e preside o culto, de modo que não se perca o essencial.
Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Paróquia São Sebastião e São Vicente
[1] DIDAQUÉ OU DOUTRINA DOS DOZE APÓSTOLOS. In. Antologia Litúrgica: textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, p. 97.