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As imagens de Jesus que a Liturgia comunica (2)

 O Filho

Diversos textos eucológicos mencionam a filiação divina de Jesus de Nazaré. A Escritura e a Tradição, entrelaçadas na experiência litúrgica, reeditam na vida dos fiéis a filiação divina de Jesus.  É importante, então, nos debruçarmos  um pouco sobre essa “condição” existencial de Cristo. Dizemos “condição” porque não é apenas um título, como Kyrios ou Christós. É bom nos lembrarmos que Jesus – conforme os evangelhos canônicos – jamais se autoproclamou “Filho de Deus” na perspectiva de um título religioso.  Primeiro, porque esta expressão é ambígua. Lemos em Mt 5,9 Jesus chamar de “filhos de Deus” aqueles que promovem a paz e o sentido aqui é de “amigos de Deus”, conforme o uso semítico1.  Essa ambiguidade, inclusive, poderia levar à compreensão de que Jesus se autoproclamava Deus, como partícipe de sua natureza. Isso coincide com uma blasfêmia numa religião monoteísta. Aliás, no evangelho de João esta é a acusação que determina – religiosamente – a motivação para a execução penal: “Nós temos uma Lei e, conforme esta Lei, Ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus.2”  O detalhe está em “fazer-se” Filho de Deus. Atribuir a si mesmo um título que – de alguma maneira – o igualaria a Deus. 3

Em segundo lugar, Jesus não usa esta expressão porque vive a filiação de maneira inclusiva: “O Nazareno tinha se atribuído explicitamente no símbolo paterno uma filiação divina inclusiva, não exclusiva, isto é, em comum com seus seguidores.”4  É a Igreja que desenvolve a noção de “Filho único”, atrelada à Profissão de Fé, porque reconhece em Jesus a maneira singular e exclusiva com a qual ele se experimenta na sua relação com o Pai. Podemos aludir a esta perspectiva gloriosa da filiação, tendo como referência as seguintes palavras de São Paulo: “Quando chegou a plenitude do tempo, enviou Deus o seu Filho, nascido de uma mulher.”5  Jesus é Filho de Deus: fato da fé! Embora nunca o tenha declarado explicitamente com esse título, cultivou e exprimiu essa relação com o Pai a ponto de a comunidade dos discípulos interpretar essa filiação como um acontecimento não apenas único, mas referencial e condicionante. O título, Filho de Deus, nasce depois da experiência pascal de Jesus feita pelos discípulos. Não se deve entender aqui que, antes de morrer Jesus não era Filho, mas que a filiação divina em curso antes da morte-ressurreição foi revelada e assimilada pelos discípulos plenamente após estes eventos.

 

O NT vai utiliza “Filho de Deus” quase exclusivamente para referir-se a Jesus Cristo. Ainda que Ele não tenha utilizado esta fórmula para definir-se a si mesmo, no entanto, nos textos evangélicos o encontramos de maneira implícita nas referências a Deus como Abbá.6

 

 

Importante considerar ainda que, para a Liturgia da Igreja, importa não menos que a designação de Jesus como Filho de Deus, a nossa participação nessa filiação. Por isso, é necessário precisar a riqueza dessa condição existencial que se transformou em titulo cristológico aplicado não só a Jesus, mas a todos aqueles que se deixam batizar e iniciar em sua vida.  

Tendo deixado claro que Jesus mesmo não se muniu da expressão “Filho de Deus” para autodesignar-se em sua relação com o Pai, mas jamais renunciou a esta condição no cumprimento de sua missão, podemos sintetizar que esse título tem ao menos três significados:

1. A condição de Jesus ser Filho de Deus se sustenta na sua modalidade de relacionar-se com Deus, chamando-o de “Pai”;
2. A posição como Filho de Deus é, numa perspectiva messiânica, a designação salvífica de seu ministério;
3. Essa filiação divina evoca um aspecto também sobrenatural quanto a sua pessoa. O resgate dessas três características do título “Filho de Deus” é imperioso num tempo em que o terceiro significado sobrepujou os outros dois. Para a Liturgia, a retomada dos significados 1 e 2 são especialmente importantes, uma vez que ela se quer prolongamento dos gestos e palavras de Jesus.
 

Pe. Márcio Pimentel
Liturgista

1SESBOÜÉ, Bernard. Cristo, Señor e Hijo de Dios. Buenos Ayres: SalTerrae, 2014, p. 31.
2Jo 19,7.
3Cf Jo 5,18. Interessante o comentário do biblista Xavier León-Dufour: “O leitor sabe que a acusação deforma a verdade: Jesus   não se fez Filho de Deus, ele o é!” In. LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João IV. São Paulo: Loyola, 1998, p. 73.

4BARBAGLIO, Giuseppe. Jesus, hebreu da Galileia. Pesquisa histórica. São Paulo: Paulinas, 2011, p. 625.
5Gl 4,4.
6 REBAQUE, Fernando Rivas. La experiência espiritual de Jesús.  Materiales para reflexionar personalmente y em grupo. Madrid: San Paulo, 2005, p. 282. Cf. tb. SESBOÜÉ, Bernard. Cristo, Señor e Hijo de Dios, p. 29.



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