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As imagens de Jesus que a Liturgia comunica

1.    A Liturgia como experiência do Mistério Pascal de Cristo

A Liturgia da Igreja nasceu para comunicar a presença de Jesus e com ela preservar e desdobrar no mundo sua obra salvadora. Conforme se pode perceber na Sagrada Escritura, as manifestações pós-pascais de Jesus, em geral, se dão no contexto de uma reunião discipular. O exegeta Xavier Léon-Dufour observa que “o próprio acontecimento da Ressurreição não é contado em nenhum texto do Novo Testamento: por sua natureza escapa ao conhecimento histórico. ” Segundo o estudioso das escrituras, por essa razão, as comunidades cristãs primitivas não se ocupam de relatar biograficamente a ressurreição, mas de narrá-la a partir da compreensão que têm de si mesmas, pois Jesus está a elas ligado inseparavelmente e para sempre presente entre os seus.2

Sabe-se que o Mistério Pascal de Cristo ocupa o vértice da fé eclesial e, evidentemente, também da Liturgia que é a fé em ato. Enquanto a morte de Jesus pode ser situada no tempo e no espaço e, por assim dizer, tomar lugar na história e nela ser observada e comprovada, o mesmo não se pode dizer da ressurreição. Classificada como um evento trans-histórico3 ou meta-histórico4  a fé na ressurreição está ligada diretamente à palavra dos crentes: como profissão de fé, testemunho sobre o acontecimento ou narrativa sobre o evento – as denominadas “aparições”.5  Essas aparições ou, para sermos mais fiéis ao original grego, as manifestações pós-pascais de Jesus são como que vestígios da ressurreição no interior da história humana.6  O fato é que esses vestígios estão presentes na vida dos discípulos.

É importante ressaltar que a fé na ressurreição dos mortos não é invenção cristã, mas desenvolvimento (ainda que tardio) da fé bíblica. Os cristãos, de origem judaica, vocacionados à hermenêutica, ocuparam-se de ler a vida de Jesus em sua conexão com as promessas do Antigo Testamento. Esses homens e mulheres dos albores da fé cristã estavam acostumados a discernir as mirabilia Dei no interior da história humana. E a ressurreição de Jesus encaixara-se no âmbito dessa percepção e descrição, como atuação divina do Pai, e sua aprovação e acolhida de toda a trajetória do Filho. Isso se exprime quando se afirma que Jesus “foi ressuscitado” dos mortos. Chama-se a esse procedimento, de evidenciar a ação de Deus sem pronunciar seu Nome, de passivo teológico. Inserir a ressurreição de Jesus no conjunto das ações salvíficas de Deus é uma tarefa que se cumpre, sempre, à luz da Sua Divina Palavra, cujo registro é a Bíblia e a transmissão é a Tradição. Nessa perspectiva, é que se afirma, “foi ressuscitado, conforme as Escrituras.”

Entretanto, a Palavra de Deus consignada tanto na Sagrada Escritura quanto na Tradição não se caracteriza apenas e primeiramente como um evento oral/escrito, como um acontecimento verbal. Na raiz do anúncio está uma experiência, um fato compartilhado, a Páscoa de Jesus. Conta-se, transmite-se aquilo que é, antes, vivido e interpretado. Isso porque, conforme afirma o teólogo francês Bernard Sesboüé, SJ, O Evangelho é vida. Não se transmite só pela Palavra. Compromete as ações e toda a maneira de viver.7  

Mas, entre a Palavra e a ação, há uma esfera original que participa tanto de uma como da outra: a liturgia. (…) O Evangelho se transmite também e necessariamente mediante a celebração litúrgica que também é uma tradição que se recebe. Já São Paulo dizia aos coríntios ao falar-lhes sobre a celebração da Ceia: “O que eu recebi do Senhor, e de minha parte lhes transmiti” (1Cor 11,23). (…) A liturgia também está ligada à gênese do Credo (…). O símbolo dos apóstolos nasceu no marco da preparação para o batismo e sua celebração. O Símbolo de Niceia-Constantinopla (381) será a profissão de fé por excelência, na Eucaristia. Essa conaturalidade ou simbiose, se traduziu muito cedo em um adágio que pode traduzir-se assim: “a norma da oração é a norma mesma da fé (lex orandi lex credendi).8

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

  

Elisabeth Parmentier, em sua obra “A Escritura Viva”, fala da liturgia ao lado da Igreja com lugar estruturante da revelação bíblica que tem seu cume em Cristo Jesus. Para a autora, a liturgia relê a Sagrada Escritura como História da Salvação. A memória dos fatos bíblicos que se faz mediante a eucologia, bem como a reedição das ações salvíficas do Senhor no hoje da comunidade celebrante concernem à liturgia um status singular, reconhecido pela Sacrosanctum Concilium:  “A sagrada liturgia não esgota toda a ação da Igreja (…). Contudo, a Liturgia é o cimo para o qual se dirige a ação da Igreja e ao mesmo tempo, a fonte donde emana toda sua força (…) impele os fiéis, saciados pelos mistérios pascais, a viverem em união perfeita, e pede que ‘sejam fiéis na vida ao que receberam pela fé.’”9   E o que recebem pela fé senão uma nova existência, uma vida pascal: “Se alguém está em Cristo é nova criatura.”10

A Liturgia, portanto, vislumbra a vida do Filho em nós. A vida pascal, a vida nova em Cristo é vida filial. São Paulo o afirma explicitamente: “Ele (Deus) nos predestinou para sermos seus filhos adotivos por Jesus Cristo.”11  Dom Piero Marini dirá, inclusive que a Liturgia é a própria vida do Filho:       

“A obra da nossa salvação não é um objeto ou muito menos um conceito, mas uma pessoa: Jesus Cristo. Confessar com o Apóstolo Paulo que Jesus Cristo por obra de Deus se fez redenção por nós” (1Cor1,30) significa crer que a nossa salvação não é este ou aquele aspecto singular que nos conduz a Cristo, mas sua existência inteira, e ele na inteireza de sua história como ser humano, assim que “ a sua humanidade, na unidade da pessoa do Verbo, foi feita instrumento da nossa salvação” (SC 5).


Ainda hoje, por certo, a nossa única salvação é a vida de Cristo, e na medida em que a liturgia realiza a obra da nossa redenção, ela só pode ser a própria vida do Filho, por isso “Cristo está sempre presente na sua Igreja, e de modo especial nas ações litúrgicas” (SC 7). Os seus gestos de salvação são hoje ações sacramentais assim que, “quando alguém batiza é Cristo mesmo que batiza” (SC 7). A sua Palavra de Salvação é hoje a palavra sacramental da Escritura “em que É ele que fala quando na Igreja se lê a Sagrada Escritura” (SC 7).12

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1 LÉON-DUFOUR, Xavier. Leitura do Evangelho segundo João IV. São Paulo: Loyola, 1998, p. 140.
2 Cf. Idem.
3 Cf. BÖSEN, Willibald. Ressuscitado, segundo as Escrituras. Fundamentos Bíblicos da fé pascal. São Paulo:   Paulinas, 2015, p. 117.
4 Cf. RUBIO, Alfonso Garcia. O Encontro com Jesus Cristo Vivo. Um ensaio de cristologia para os nossos dias. São Paulo: Paulinas, 2001, p. 109.
5 Cf. Idem, p. 104-105.
6 Cf. BÖSEN, Willibald. Ressuscitado, segundo as Escrituras, p. 121.
7 SESBOÜÉ, Bernard. El evangelio y la tradición. Buenos Ayres: San Pablo, 2010, p. 113
8 SESBOÜÉ, Bernard. El evangelio y la tradición. Buenos Ayres: San Pablo, 2010, p. 113-115.
9 Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium 9-10.
10 2Cor 15,17.
11 Ef 1,5.
12 GRILLO, Andrea, RONCONI, Marco.La riforma della Liturgia. Introduzione a Sacrosanctum Concilium, Milano, Periodici San Paolo, 2009, p. 4ss.

 



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