É importante termos em conta que o espaço sagrado cristão não é, na mesma linha de compreensão, o “substituto” do Templo de Jerusalém, uma vez que nem sua estrutura teológica e espacial nem sua concepção ministerial são reproduzidas em nossas igrejas. Faz-nos bem lembrar as palavras de Adolf Adam: “Ainda antes que se construíssem igrejas já existia a Igreja. Esta constatação põe a claro que o edifício sacro cristão não pertence à essência íntima do cristianismo. De fato, a Igreja como povo de Deus, como comunidade dos convocados por Deus, pôde viver e agir cerca de dois séculos sem ter à disposição locais de culto próprios.”1 Conforme já vimos, o Templo Vivo e Verdadeiro é Cristo e a Igreja é edificada com as pedras vivas do Povo de Deus à medida que nasce pelo impulso do Espírito Santo e tem o Senhor Jesus por fundamento.
A Casa da Igreja, por sua vez é lugar epifânico e eclesiogênico, isto é, onde este Mistério de Cristo e sua Igreja acontecem no “hoje” das celebrações litúrgicas. Sua sacralidade, portanto, deriva deste evento da salvação e não da separação daquilo que é preestabelecido convencionalmente como “profano”. Uma vez que o “véu do santuário fora rasgado de cima a baixo”, não se pode mais emblematizar um “aqui” como lugar sagrado e um “acolá” como lugar não-sagrado no sentido de não ser passível da experiência do Mistério Pascal. Conforme entoamos no Triságio (Santo): os céus e a terra estão cheios da glória do Senhor.
Na verdade, poderíamos trocar os qualitativos para sermos mais claros, pois utilizamos a palavra “sagrado” para referirmo-nos ao que é “santo”. O lugar de culto dos cristãos é edificação sagrada (templo) porque aí refulge a santidade de Deus que tudo transfigura. Profaná-lo seria criar obstáculos para que esta santidade o habite e se exprima. O brilhantismo das antigas iconografias pintadas nas paredes das igrejas da antiguidade nos dá testemunho do que significa esta compreensão acerca do sagrado. O teólogo e artista plástico padre Marko Rupinik recorda que nas paredes destas igrejas estava registrado o que se dava ao redor do altar: os santos e santas, homens e mulheres transfigurados pela Páscoa de Cristo; na verdade, este registro começava pela abside que nunca conteve o crucifixo, segundo os antigos testemunhos, mas o Cristo Pantocrátor, cercado pela sua Igreja ou mesmo a Mãe de Deus com o Filho bem amado no colo, qual trono que a Igreja deve ser para o Cordeiro que arranca as trevas do mundo.
Padre Marko assinala que esta dinâmica iconográfica corrige o olhar, deixando perceptível que Deus se fez ser humano e por sua humanidade diviniza-nos. Assim, se na oração comunitária olho um pouco a frente e vejo alguém com o qual não estou bem, ergo o olhar mais adiante e enxergo aquilo que é aos olhos de Deus, aquilo que também eu sou chamado a ser. A partir daí tudo muda, as relações mudam: ele é Filho no filho, meu irmão pela fé. Os laços familiares se fortalecem.
Nesta perspectiva, o espaço sagrado é lugar onde se estabelece uma familiaridade nova, calcada na comunhão com o Mistério. É Casa da comunidade de fé, onde as relações se dão sob nova perspectiva: o amor de Cristo. Não é sem motivo que a assembleia litúrgica responde à saudação apostólica com “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo”. A Casa da Igreja é o lugar onde podemos encontrar o amor sem reservas que o Evangelho exige como distintivo da fé cristã. É nessa Casa que podemos buscá-lo quando nossos amores forem insuficientes para persistir no caminho. E é no contato com este amor que nos transfiguramos; quando nossa humanidade se torna divinizada, pois Cristo nos amou com amor eterno para nos deixar o exemplo de como poderíamos adentrar no coração da Trindade, que é sua Família. Valem, aqui, as preciosas palavras de D. Armando Bucciol citando as orientações da CNBB para a construção e disposição de espaços sagrados: “quando se constrói uma igreja, não se pode esquecer que ela é toda um ícone, uma imagem viva. Moldada pela Liturgia, ela é toda mistagógica.” 2
Como muito bem escreve Klemens Richter citando H. B. Mayer3 , é preciso entender porque o modelo originário do espaço celebrativo cristão é mais a sinagoga do que o Templo de Jerusalém: “a presença de Deus não acontece no espaço, mas na reunião dos crentes”. A Sinagoga não era um santuário, como o Templo, mas Casa da Comunidade. Era nela que a vida dos fieis se via orientada, onde a ética era transmitida e aprendida segundo o ensino da Escritura e da Tradição viva.
Para nós, cristãos, essa lógica permanece: trata- se da novidade do Evangelho de Cristo que migrou da sinagoga às casas dos fieis numa época de alta violência e perseguição, mas também de grande força testemunhal e que subsistiu até a época de Agostinho, até ser tragada pela força do império romano. É essa experiência que nossos espaços sagrados tem por vocação acolher, proporcionar e desenvolver. O espaço sagrado é onde nos fazemos “familiares” de Jesus pela acolhida de sua Palavra. É o lugar no qual os laços de nossa fraternidade se tornam mais fortes porque está construído sobre a rocha firme do amor de Deus que Jesus encarna e revela. É ambiente vital onde a acolhida é praticada como testemunho daquele abraço que o próprio Senhor deu na humanidade quando os braços de seu Filho se abriram no alto do calvário.
Padre Márcio Pimentel
Liturgista