A crise mundial que estamos vivenciando, qual poliedro, pode ser analisada sob diversos ângulos. Todos os segmentos da sociedade sofrem o impacto de tamanha crise social, ética e cultural. Sua incidência no cenário político é notória e causa grave prejuízo ao ser humano e à sociedade.
O atual contexto político, marcado pela corrupção, o mau uso do poder, a exacerbada polarização, a falta de respeito às leis e a inoperância de não poucos agentes, vem produzindo o terreno fértil onde germina uma concepção negativa da política[1], consolidando entre as pessoas a mentalidade de que a política e o bem comum são princípios diametralmente opostos e incomunicáveis. Para muitos é impossível sequer pensar a política enquanto instrumental necessário para promover a vida e a dignidade do ser humano.
Na Fratelli Tutti, mais precisamente no capítulo quinto da sua Carta Encíclica, o Papa Francisco nos apresenta alguns elementos de reflexão acerca da necessidade, urgência e possibilidade de uma política melhor no mundo de hoje.
Segundo ele, dentre as diversas formas de expressão da caridade, a mais preciosa e sublime é a política, pois “um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada, mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, entra no campo da caridade mais ampla, a caridade política”[2].
A política autêntica sempre projeta o ser humano para ‘fora de si mesmo’, priorizando o ‘outro’ e suas relações sociais. Quando ela deixa de cumprir sua missão de gerar processos sociais de fraternidade e justiça para todos, degenera-se numa espécie de arquitetura a serviço de projetos egoístas para permanência de ‘alguns’ no poder [3].
Como tem sido o seu pontificado, de modo profético e ousado, o Papa Francisco dirige uma pergunta a todas as pessoas que lutam e desejam a fraternidade e a amizade social: “Poderá o mundo funcionar sem política? Poderá encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem uma boa política?” [4].
A política melhor e necessária, apontada pelo Papa como instrumento a serviço da fraternidade e amizade social e do desenvolvimento integral de todas as nações, é possível a partir de uma ética do ‘cuidado’ com o ‘outro’, centrada no amor que resolutamente promove o verdadeiro bem comum[5].
Faz-se necessário o retorno à ética – morada ou casa do ser[6] – para a gestação de uma política melhor, caso contrário seremos reféns de estratégias e formas políticas que dificultam o caminho para um mundo diferente, mais humano, justo, solidário e fraterno.
Na compreensão do Papa Francisco, uma política melhor é possível, pois o ser humano é capaz de oferecer ao mundo o melhor de si mesmo. Além disso, é necessário confiar nas reservas de bem que, apesar de tudo, existem no coração do povo[7].
A política melhor, necessária e salutar, na ótica do magistério do atual Bispo de Roma, promove a organização da sociedade assegurando que cada pessoa contribua com as suas capacidades e o seu esforço[8]; proporciona às pessoas os recursos para o seu desenvolvimento, de modo que possam sustentar a vida com o seu esforço e capacidade[9]; não se submete aos ditames do mercado financeiro, mas coloca a dignidade humana no centro de suas ações; reforma as instituições, coordenando-as e dotando-as de bons procedimentos que permitam superar pressões e inércias viciosas[10]; trabalha em momentos difíceis e diante das graves carências estruturais, com base em grandes princípios e pensando no bem comum a longo prazo[11]; procura caminhos de construção de comunidade nos diferentes níveis da vida social, a fim de reequilibrar e reordenar a globalização para evitar os seus efeitos desagregadores[12]; move-se a partir da caridade que se traduz no amor preferencial pelos pobres, os últimos e mais vulneráveis, respeitando-os no seu estilo próprio e cultura e, por conseguinte, integrando-os na sociedade[13]. A política melhor, cuida da fragilidade dos povos e das pessoas, procurando solução para tudo o que atenta contra os direitos humanos fundamentais[14].
Não deixemos que a política, expressão sublime da caridade, seja sequestrada por pessoas que desejam transformá-la unicamente num instrumento a serviço dos seus projetos autoritários e mesquinhos, dos seus instintos egoístas e estreitos horizontes. Se permitirmos ao sequestro, ela se apresentará como algo perverso e até mesmo incompatível com aqueles valores fundamentais e inalienáveis que devem reger as relações humanas e sociais: igualdade, liberdade e dignidade para todos.
+ Geovane Luís da Silva
Bispo Auxiliar | Belo Horizonte
[1] Cf. Fratelli Tutti, 176
[2] Fratelli Tutti, 180
[3] Cf. Fratelli Tutti, 159
[4] Fratelli Tutti, 176
[5] Cf. Fratelli Tutti, 159
[6] Cf. VAZ, Henrique C. de Lima, Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1, São Paulo: Loyola, 1999, p. 13.
[7] Cf. Fratelli Tutti, 196
[8] Cf. Fratelli Tutti, 162
[9] Cf. Fratelli Tutti, 161
[10] Cf. Fratelli Tutti, 177
[11] Cf. Fratelli Tutti, 178
[12] Cf. Fratelli Tutti, 182
[13] Cf. Fratelli Tutti, 187
[14] Cf. Fratelli Tutti, 188