A situação embora difícil é clara: para combatermos a proliferação desenfreada do novo coronavírus faz-se necessário distanciamento social. Permanecermos em casa (ao menos aqueles que tem casa) é postura cientificamente recomendada, civilmente responsável e evangelicamente esperada. Parece paradoxo, mas é um ato de amor não se aproximar das pessoas mais do que o estritamente necessário não apenas para nos preservar, mas sobretudo para não expô-las ao perigo.
Para os cristãos, o impedimento de reunir-se como habitualmente faz-se causa transtornos. Todas as atividades pastorais foram praticamente suspensas e dentre estas as celebrações litúrgicas. É uma decisão difícil para os pastores e fiéis e divide opiniões. Há quem – irresponsavelmente – diga que devamos sair em procissão e clamar os céus, fazer mais e mais missas para conter a iracúndia divina e “conquistar” a misericórdia de sermos poupados. Há outros, porém – a maioria sensata, graças a Deus! – que compreende o drama vivido em todo o planeta e tratam de oferecer seu apoio às medidas restritivas.
É sempre importante lembrar que não estamos impedidos de celebrar, mas de nos reunir nas formas habituais. Não é possível neste momento encontrarmo-nos no lugar em que a comunidade se reúne para fazer assembleia. Esta “regra” vale para todas as celebrações cristãs, mas de especial modo a Eucaristia. A oração do Ofício Divino (Liturgia das Horas) por exemplo, em casos “extremos” pode ser celebrada pelo fiel individualmente. Mas no caso da Missa isso não é possível. Não há missa sem povo congregado. O Concílio Vaticano II corrigiu o equívoco de pensarmos em uma missa privada que devastou a fé de tantos modos possíveis. Em casos extremos a Igreja permite que se celebre a Eucaristia com a presença de um fiel que faz às vezes de ministro. Esta não é missa “privada” porque não é pública. O conceito de missa privada é ligada a uma época em que bastava – para celebrar a Eucaristia – três coisas: ministro (ordenado), matéria (pão e vinho), forma (palavras da consagração). Esta modalidade tanto litúrgica quanto teológica não existe mais, a não ser no caso do anacrônico uso do Missal tridentino.
Se a “primeira matéria” da Eucaristia é a assembleia, como resolvemos a questão? A primeira saída é a redescoberta da liturgia da casa. Celebrar em família. Aqui o conceito de família pode ser dilatado, já que um vizinho que more sozinho ou um ou dois amigos cristãos por afinidade podem ser convidados a rezar juntos. Evidentemente que tudo isso deve ser vivido dentro dos padrões de cuidado sanitário previsto pelas autoridades. Um grupo pequeno pode sim reunir-se na casa. Reunir-se assim não é uma novidade. O que é novo é a forma da oração. Não mais ou apenas o terço ou a novena do santo de devoção, mas a liturgia da Igreja. Poderia ser a missa, se a estrutura ministerial permitisse. Mas, enquanto este dia não chega, porque a comunidade depende de um ministro ordenado nas condições que hoje conhecemos, devemos “lançar mão” das outras possibilidades.
Falemos da Semana Santa e dos Domingos. Tradicionalmente, “com T maiúsculo, a Igreja recomenda que as pessoas impedidas de participar das assembleias ordinárias – isto é, no âmbito da comunidade de fé a que pertencem – celebrem a Palavra de Deus. O modo mais comum de se fazer isso é por meio do Ofício Divino que no Brasil pode ser encontrado tanto na forma da Liturgia das Horas quanto do Ofício Divino das Comunidades. Para a Quinta-feira Santa, por exemplo, a orientação é dada por extenso no livro da Liturgia das Horas: “Para aqueles que não participam da Missa vespertina da Ceia do Senhor”; o mesmo se repete com relação àqueles que não participam da celebração da Paixão e Morte do Senhor na sexta-feira santa e na Vigília Pascal. Ou seja, sem liturgia não se fica porque a vida cristã depende dela.
Com estas informações, concluímos que a experiência do Mistério Pascal não depende exclusivamente da Missa. A liturgia é um fato sacramental complexo e não se reduz a esta ou aquela celebração. Existem outras possibilidades – que não a Missa – e podem ser aprofundadas e estimuladas. Além do Ofício Divino e as celebrações de Bênção (Ritual Romano), temos no Brasil amplíssima experiência com a Celebração da Palavra de Deus no Dia do Senhor, dada a impossibilidade de celebrar a eucaristia habitualmente. A CNBB bem como diversas Diocese no Brasil (e fora dele, aqui em Pádua, diocese em que atualmente resido, por exemplo) usaram deste recurso adaptando-os à realidade familiar ou “da casa”. Todas estas opções são viáveis também ministerialmente porque não dependem – como a celebração eucarística – do ministro ordenado.
Não há como resolver o problema da “participação da Missa”, mas há como prover os cristãos e cristãs com experiências espirituais da mesma natureza da Eucaristia, ou seja, experiências litúrgicas, celebrações, sem que – com isso – pensemos em uma substituição. Não há substituição. Devemos compreender claramente isto: há um “jejum eucarístico” imposto pelo contexto sanitário e também eclesial (esquema ministerial). Comunhão fora da missa não é solução, pois somente em casos especificamente justos (viático, por exemplo) ou enfermos, mas exige-se celebração; procissão do Santíssimo, exposição e adoração ao santíssimo também não substituem. Faz-se aquilo que é possível. Do ponto de vista sacramental, mais importante do que expor o santíssimo, fazer adoração, dar bênção com a Igreja vazia ou (pasmem!) sobrevoando a cidade com helicóptero, é celebrar o Mistério Pascal de Cristo com os ritos que a Igreja sabiamente nos oferece.
Uma saída amplamente – também abusivamente – recomendada aos padres e até exigida pelos leigos e leigas são as celebrações via streaming. Para encurtar a discussão sobre este ponto (isto é, a transmissão das celebrações ao vivo pelas redes sociais) basta dizer que têm valor pedagógico, catequético e que afetivamente podem ajudar a consolar as pessoas neste tempo de dificuldades. Mas há limites no que concerne à espiritualidade cristã. A celebração em família jamais poderia ser posta em questão diante da possibilidade de transmitir celebrações online ou pela TV. A primeira é fundamental no tempo em que vivemos, a segunda é opcional, embora possa certamente ajudar as pessoas (quando não atrapalhe).
A partir deste ponto, penso que é importante discutirmos não a transmissão das celebrações em si mesma, que é legítima, mas colocar sobre a mesa alguns aspectos que vêm descuidados na relação entre ritual e virtual. A Pastoral da Comunicação tem uma grande responsabilidade neste momento da Igreja e em parceria e comunhão com a Pastoral Litúrgica são chamados a colaborar com os fiéis durante a quarentena. É um trabalho belo e árduo que exige competências específicas e profissionalismo, seja técnico e teológico, para não gerar confusão e prejuízo à fé. Proponho nos próximos artigos uma reflexão destes elementos para que acompanhemos responsavelmente nosso povo nesta travessia difícil mas que pode ser vivida como tempo de graça e oportunidade de responder sempre filialmente às interpelações que vem do Senhor.
Padre Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese
de Belo Horizonte, membro do Secretariado
Arquidiocesano deLiturgia, doutorando em Liturgia
Pastoral pelo Instituto de Liturgia Pastoral da
Abadia deSanta Justina em Pádova-Itália