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[Artigo] Quando Pedro disse “não” (4) – Padre Márcio Pimentel, Secretariado Arquidiocesano de Liturgia de BH

Crítica Ritual

Aos olhos de quem um rito pode “falhar”? Pensemos um momento na discussão posta em movimento nos últimos meses no que se refere aos ritos transmitidos na web. Há quem fale de participação, porque sentiu-se envolvido e afetivamente ligado ao que se transmitia; há quem enxergasse praticamente um “sacrilégio”, o que seria, respectivamente – dentro da taxonomia que apresentaremos a seguir –  uma caso de “glossa” e “violação ritual”. Isso nos faz pensar que a avaliação performance ritual não está reduzida à atuação de profissionais da antropologia e da teologia que dela se ocupam, como os liturgistas.  Os atores envolvidos nas celebrações estão acostumados a avaliar – mesmo inconscientemente – a performance.

Neste contexto, podemos falar da competência para avaliar uma performance ritual sem estarmos presos ao mundo da opinião. Uma comunidade pode, séria e criticamente, avaliar sua prática celebrativa, o que é legítimo, saudável e esperado. Mas, a partir de qual critério os participantes de uma celebração analisam os ritos? São critérios especificamente rituais ou de outra natureza (moral, por exemplo). Para percorrermos um percurso crítico relativo aos ritos (=científico), depois de decidir-nos pelo modelo epistemológico mais adequado é preciso, do ponto de vista medotológico, decidir-se por um tipo de abordagem: por exemplo, a participação direta é própria de grupos de avaliam a própria experiência litúrgica; a via indireta (coleta de dados, relatórios) é mais comum entre pesquisadores que são externos à comunidade que celebra (embora as técnicas possam ser mescladas, como ocorre na chamada “observação participante” realizada por liturgistas e membros da pastoral litúrgica no Brasil). Independente da escolha dos instrumentos favorecerão a estratégia de contato com o fenômeno ritual, é necessário considerar uma o marco teórico em sintonia com o modelo epistemológico adotado.

Aplicando ao caso da liturgia católica, não bastaria, por exemplo, escolher como marco teórico um teólogo da época patrística. Embora não se refute sua importância, no que consta da crítica ritual, não é suficiente esta aproximação. Não posso justificar ou criticar uma prática ritual apenas com base naquilo que João Crisóstomo no século V disse sobre os ritos de iniciação porque – concretamente – a liturgia que ele tinha como pressuposto de suas catequeses mistagógicas, por exemplo, era outra. O intuito dos padres da Igreja não era de “explicar” a liturgia, não senso crítico-científico de hoje, mas geralmente era de iniciar os fiéis a uma experiência frutuosa dos ritos. Aquilo que nos oferecem como legado filosófico e teológico é imprescindível, mas não é suficiente.  Com o critério patrístico podemos avaliar um rito como aquele que ganha forma com a reforma litúrgica do Concílio Vaticano II, mas também justificar aquele que vem reformado e encontramos hoje conservados nos missais e rituais tridentinos.

Em termos práticos, para executar uma crítica ritual séria e eficaz, é necessário um marco teórico que atenda ao perfil teológico do Concílio (que considero teoantropológico, por questões de clareza) e também aqueles próprios da ritologia em geral. Neste sentido, temos a necessidade de especialistas de outras áreas do conhecimento humano, sobretudo da antropologia e da arte.

No que se refere ao estudo dos “ritos infelizes”, antropólogos que estudam a fundo o fenômeno ritual, entrecruzando experiências de culturas diferentes pode oferecer ao liturgista uma taxonomia capaz de guiar sua experiência e análise. É isso que fez Ronald Grimes ao classificar a falência ritual com a seguinte tipologia:

  1. Atos cumpridos, mas vazios:

a)ausência de confiança: os participantes não reconhecem a autoridade ou legitimidade da   atuação ritual de modo que o rito não tem lugar; uma espécie de “jogo que não se joga” (non-play), é portanto uma ação vazia, morta.

b)pessoas ou circunstâncias inapropriadas: o rito é legítimo, mas não “pertence” aquele sujeito ou não se enquadra na ocasião.

2. Atos viciados:

a)Performance com falha ou defeituosa: omissão de partes/elementos significativos do programa ritual; acréscimo de gestos ou fórmulas que não servem ao procedimento;

b)Performance incompleta: quando há um impedimento de levar a termo o rito sob algum aspecto;

3. Atos sem vitalidade:

a) Ausência de sinceridade: não há motivação, a emotividade não vem envolvida, falta    intencionalidade;

b)Violação da performance: quando o ato é cumprido mas não vem considerado em suas consequências;

c)“Glossa”: a performance encobre os conflitos dos atores envolvidos;

d)Performance falha: quando a prática ritual não cria a “atmosfera” que requerida;

4. Outros:

a)Performances ineficazes: quando a ação ritual não realiza aquilo que que se espera com sua prática;

b) Violação através da performance: quando o rito é légitimo, o procedimento ocorre mas é humilhante;

c)Crise de liminaridade: quando não se respeita os limites da ação ritual e ele vem confundido com o cotidiano;

d) Performances opacas: quando não são claros aos participantes palavras, símbolos, gestos. Há uma variabilidade quanto à intensidade da opacidade. Nestes casos gera-se um prejuízo no que concerne não só ao significado mas também ao sentido do rito.

e)Performances anuladas: quando um rito em comparação com outro, que haveria o mesmo teor ou significado, vem desacreditado. É fruto de uma espécie de “competição” entre formas rituais que não podem conviver.

f)Performance interrompida: quando os atores decidem por não realizar o rito; parece-se com o caso em que os participantes não se reconhecem no procedimento ou não o reconhecem(“non-plays”); no entanto, aqui se trata tão somente do abandono do rito.

g)Mal-entendidos: quando o rito vem mal interpretado o que ocorre com maior frequências com pessoas externas ao grupo que frequentemente procede com a performance.

O próprio Grimes reconhece que a tipologia não resolve tudo. Proceder com a crítica ritual exige não só uma referência taxonômica a partir da qual podemos reconhecer as falhas de uma performance ritual. Um dos problemas que a tipologia não resolve diz respeito a lugar de quem avalia, como dito antes, se observador ou participante do rito. Também não se pode pensar que um rito falhe em apenas um nível ou em todos ao mesmo tempo (isso é muito raro) e tampouco que um erro dure todo o tempo que o rito venha realizado. Para afirmarmos que um rito falha não basta enquadrar as possíveis falhas ou erros dentro da tipologia. É imprescindível conhecer os valores subjacentes à performance estudada (o ethos dos atores) como também estar atentos aos valores de quem estuda o fenômeno. A clareza conceitual (opção epistêmico-metodológica) ajuda a manter a perspectiva crítica da análise, mas não se pode esquecer que o rito é um fenômeno cultural e que toda interpretação de um evento desta natureza não é absoluta.

Conclusão: quando Pedro disse não…

… Jesus respondeu-lhe: “se não lavar os teus pés não terás parte comigo”. Usando a tipologia apresentada, um antropólogo ou liturgista identificaríamos a falha na performance querida por Jesus – ao menos em parte – porque Pedro não aceitava entrar no “jogo” proposto no rito do lava-pés (non-play). Intersubjetivamente, percebemos uma frustração da parte de Jesus e de Pedro na descrição oferecida no quarto evangelho. O conjunto dos gestos, por um momento, mostrou-se vazio porque não tinha sentido para Pedro ou ao menos não tinha o mesmo sentido que Jesus lhe atribuía. Jesus soube conduzir Pedro à participação, no entanto, o lava-pés mostrou-se em parte um rito com falhas. Evidentemente, o rito não fracassou completamente porque outros membros daquela assembleia convivial entraram no jogo. Mas é reconhecível que alguns elementos daquele ritual não funcionaram bem, ou ao menos não funcionaram igualmente para todos os envolvidos. Por exemplo, é verdade que os outros discípulos parecem ter entrado no jogo, diferente de Pedro, mas Judas o traiu (violação da performance), e todos os outros discípulos menos aquele que Jesus amava, o abandonaram. O lava-pés é um rito que merece atenção especial, em certa medida. É bom que tenhamos um registro canônico deste tipo porque é possível reconhecer as consequências de uma performance falida – no caso, avançando no relato da paixão. A nós que observamos de fora – como leitores – podemos chegar a diversas conclusões, mas para chegar a uma crítica ritual razoável precisamos considerar diversos elementos conforme buscamos apontar no presente (e breve) estudo.

 

 



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