“As profundezas dos seres, juiz vireis penetrar”[1]
Certa vez em um retiro, Ione Buyst, grande teóloga da liturgia no Brasil, nos disse que um dos grandes problemas relativos à Liturgia em nossos tempos se refere às emoções. Ione comentava a respeito do relativo “sucesso” de celebrações puramente epidérmicas e que tendiam à superficialidade. Ela se referia aos casos nos quais os ritos tinham valor na medida em que geravam aquele “arrepio” que indica certo prazer e satisfação dos fiéis. Caso a celebração não “produzisse” aquele efeito, não servia. Em reação a este dado, nós liturgistas temos certa dificuldade de lidar com um tipo de performance ritual na qual é mais importante “certos” efeitos psicológicos do que a experiência de deixar-se encontrar pelo Mistério e, guiados pelo Espírito de Cristo, penetrá-lo. É como se dotássemos a Liturgia de um escopo ou finalidade que lhe seria alheia. Neste caso, se trata do uso ou manipulação da celebração no intuito de dotar seus agentes – assembleia – de sensações de pura satisfação e autogratificação.
No entanto, a dimensão emocional não pode, absolutamente, ser descuidada quando se trata de celebrar a morte e ressurreição do Senhor. A denúncia feita por Buyst não se refere à exclusão da dimensão emocional da pessoa quando celebra. Isso equivaleria a desumanizar o rito, o que seria uma contradição já que ele é exatamente fonte de humanização. A exclusão das emoções do âmbito simbólico-sacramental teria como consequência uma redução da fé à doutrina, quando ela é, antes de tudo confiança e exercício de fidelidade que estão visceralmente conectadas às emoções primárias como o medo e a alegria. De fato, no quarto domingo do Advento, escutaremos a proclamação do Evangelho da anunciação o “sim” da Virgem ao Anjo que lhe saúda com um “Ave” (Alegra-te!) e lhe endereça a famosa exortação bíblica: “Não tenhas medo”. A fé de Maria que se torna modelar para a Igreja nasce no contexto desta saudação que toca o universo emocional em seus fundamentos.
Uma pergunta que podemos nos fazer é sobre como o tempo do Advento nos ajuda a experimentar a fé no Messias, tendo em conta a complexidade do fenômeno humano, incluído o aspecto emocional. Por que esta questão é importante para nós? Simplesmente, as emoções são consideradas uma “fonte energética” imprescindível para viver humanamente. Estudos na área na neurociência são claros em afirmar a importância das emoções para o surgimento da consciência e para a configuração do ser sobretudo em sua conexão com a ação e a razão.[2] Não se pode falar em um processo de evolução ou maturação da pessoa sem considerar seus estados mentais afetivos. Também no âmbito da fé, é impossível falar da nossa “transformação” segundo a imagem de Cristo, isto é, o nosso pleno desenvolvimento como seres humanos culminando na identificação com Ele e finalmente entrando no cerne da comunhão divina ignorando nossas dinâmicas emocionais. Uma vez que esta “força” é despertada e excitada sobretudo naquelas ações que chamamos “simbólicas”, como a arte, seria grave não a considerar no âmbito da prática litúrgica na qual o exercício artístico (canto/música, gesto/dança, poesia, pintura, escultura etc.) compõe tem termos linguísticos a trama ritual.
Partindo da experiência das celebrações no tempo do Advento, partamos de um gesto aparentemente funcional e que, no entanto, é carregado de sombolismo: acender as velas da coroa. Este gesto carrega em si mesmo o drama da espera que é feito de confiança e simultaneamente temor. Embora rapidamente associemos a vela ou a lamparina acesa ao estado de vigília que esta fase do ano litúrgico recomenda, o acendimento (o gesto de acender a chama) nos põe em contato com uma dimensão da vida que é anterior ao estado de vigília. Quando uma pessoa religiosa acende uma vela não só exprime, mas experiencia uma espécie de entrega livre de si que tem lugar somente numa relação de confiança e expectativa. Confiança em uma promessa velada; expectativa na iminência da realização do que se aguarda… a vela acesa não dura para sempre. E neste ponto, o temor ganha corpo na fragilidade da chama que dança e pode, de um momento a outro, apagar-se.
A arte de acender uma vela pode encerrar sinteticamente toda a dinâmica adventícia. Aos olhos da assembleia que participa do rito sobretudo de modo visivo, o desafio de envolvê-los é grande. Deste modo, deve-se temer o exagero de sobrecarregar a ação e consequentemente ou obscurecer o significado ou exceder na dimensão semântica. Pessoalmente, tendo participado em tantas ocasiões e comunidades, o acendimento da coroa que testemunhei este ano na Paróquia de Santana, no centro de Belo Horizonte, pareceu-me perfeito. O acendimento não foi sobrecarregado e obscurecido por um canto que teimava em “explicar” o porquê daquele gesto. Enquanto uma senhora da comunidade se aproximava da vela, soava o órgão, com um prelúdio ao canto que celebrava a promessa da luz de divina e a confiança de quem espera sua visita e foi entoado depois que a chama crepitava. Não importava a cor da vela; não importava o que significava a vela porque eu e a vela éramos um.
[1] Iudexque cum post aderis / rimare facta pectoris.
[2] Cf. BONACCORSO, Giorgio. “L’emozione a livello antropológico e religioso: l’aproccio delle scienze cognitive” in GIRARDI, Luigi (a cura). Liturgia ed emocione. Atti della XLII settimana di studi liturgici della Associzione Professori di Liturgia. Roma: CLV, 2015.