O canto de Zacarias após o nascimento do profeta João Batista, que seria morto por seu agudo senso de justiça e conversão, bendiz a Deus que faz erguer em meio a seu povo uma força poderosa de salvação (Lc 1,69). Todas as manhãs as comunidades cristãs entoam este mesmo canto celebrando, com o levantar-se do sol, a visita de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. E este trecho, traduzido literalmente do grego revela uma titulação: Jesus é o Messias. Conforme o hino de Zacarias, chamado de Benedictus, a atuação deste Messias livra o povo de Israel de seus inimigos e lhe concede servir a Deus, na sua presença, todos os dias por uma vida justa e santa. Esta é exatamente a definição do reinado de Deus.
O espaço sagrado dos cristãos, segundo o Ritual de Dedicação, é destinado para que este acontecimento salvífico se perpetue na vida de fé da Igreja. Assim reza a oração do dia na celebração da Dedicação: “derramai a vossa graça sobre este lugar, e vinde em auxilio de todos os que Vos invocam, para que o coração dos vossos fiéis aqui seja fortalecido pelo poder da vossa palavra e dos vossos sacramentos.”1 Pelos mistérios da vida de Jesus aí celebrados, os cristãos e cristãs são revestidos daquela força pascal necessária no desarme de todos quantos se opõem a seus planos de salvação. Tais inimigos, ensinam os santos padres, não são necessariamente pessoas, mas tudo quanto for obstáculo para que aquela dignidade filial que o Pai do Céu concedeu a toda pessoa humana pela encarnação, morte e ressurreição de seu Filho, a renove e lhe dê acesso à felicidade completa e verdadeira.
Nesta perspectiva, o espaço sagrado dos cristãos é lugar onde os esquemas contrários ao Evangelho de Jesus são denunciados e vencidos. É ambiente onde deve florescer o caráter profético e martirial da Palavra de Deus. Aquela mesma coragem com a qual Jesus foi capaz de perseverar no caminho até a cruz, ainda que pesassem os boatos maledicentes, a má-fama, o falso testemunho sobre seu ministério até o cúmulo da violência tanto religiosa quanto imperial.
Este espaço santificado pela presença do Messias em seu povo reunido é regado com o sangue dos mártires que souberam “amar Cristo e seus irmãos”, conforme ensina a eucologia litúrgica. Gente como o bom dominicano Bartolomeu de Las Casas que soube romper com o sistema de exploração humana que sofriam os indígenas de seu tempo. Citando-o, como ignorar que fora exatamente na Solenidade de Pentecostes que este homem de Deus deixou-se tomar pelo poder e força do Alto e decidiu, ainda na preparação de sua homilia que “não podiam ter boa consciência os que escravizavam os índios, nem mereciam receber absolvição os que mantinham escravos”2(inclua-se aqui membros da própria Igreja). E mais, como ele mesmo descreveu diante de um membro da Inquisição: “Lá deixei (…) a Jesus Cristo, nosso Deus, açoitado, flagelado, esbofeteado e crucificado, não uma, senão milhares de vezes, sempre que os espanhóis assolam e destroem aquelas gentes (…) tirando-lhes a vida antes do tempo.”3 Aqui se poderia dizer de verdadeira profanação do templo que é o ser humano.
Este é o Espírito que floresce no lugar dedicado ao culto divino, capaz de sacudir o pó das certezas e dos sistemas que as reproduzem como que inequivocamente. Este é o Espírito que redefine o sentido de sacro e profano; cuja força moveu o próprio Senhor quando denunciou seus próprios líderes religiosos de terem transformado a Casa de seu Pai, casa de Diálogo, de Oração, de Santidade em um lugar de comércio vil, de relações espúrias. Este é o Espírito dos primeiros mártires da fé que não se dobraram aos esquemas do Império Romano e foram trucidados por causa do Evangelho. Homens e mulheres cuja memória foi cultivada (= cultuada) muito cedo, quando suas vidas eram narradas como realização da Páscoa de Cristo.
O teólogo e artista plástico padre Marko Rupinik abordou essa questão quando tratou de evidenciar o modelo teológico e também arquitetônico que deveria inspirar toda construção de espaços sagrados, sejam eles catedrais ou mesmo capelas: o cristianismo dos primeiros séculos. Isso porque não estava comprometido com o Império, mas com o Evangelho. Uma fé que não se permitia manipular pelos esquemas corruptos contemporâneos. Isso significa rejeitar os esquemas advindos do período colonizador que até hoje exercem grande influência na construção de igrejas. Mas também rejeitar tudo quanto é imposto pela influência midiática e mercadológica, pela qual tudo se torna espetáculo, show. O espaço sagrado dos cristãos é lugar de realização da Palavra, no qual refulge o ser humano novo, não o ser humano ideal que nada mais é do que construto ideológico. O ser humano ideal muda conforme o calendário, conforme as épocas, segundo o chronos. O ser humano novo surge pela força e poder da vida de Jesus contemplada e assumida pelos fiéis no hoje da liturgia e da vida.
1Cf. PONTIFICAL ROMANO, Rito de Dedicação de uma Igreja, 52. (Pg. 446)
2JOSAFÁ, Carlos. Las casas: Todos os direitos para todos. São Paulo, Loyola: p. 66.
3JOSAFÁ, Carlos. Las casas: Todos os direitos para todos, p. 77.
Pe. Márcio Pimentel
Liturgista