Na última ceia, Jesus nos deixou o memorial da sua páscoa: “façam isto em memória de mim” (1Cor 11,24). A Igreja, fiel ao mandamento do Senhor, nunca deixou de celebrar a Eucaristia, repetindo os gestos que ele fez na última ceia: tomar pão e vinho, dar graças, partir o pão, distribuir o pão e o vinho para os presentes. Toda vez que a Igreja assim celebra, realiza o mandato do Senhor, anunciando sua morte e ressurreição, conforme afirma Paulo (1Cor 11,26). Mas cumpre perguntar: o que é memória? Como a Igreja entende isso? Qual o “conteúdo” desse memorial?
A palavra memorial, em hebraico zikkaron e em grego anámnesis, traduzido para o português pela expressão ‘em memória’, remete-nos à ceia pascal dos judeus e aparece pela primeira vez em Ex 12,1-14. A ceia pascal dos judeus tem a seguinte estrutura:
Uma ceia profética que antecipa o acontecimento iminente, acrescida de uma ordem de iteração (repetição); o acontecimento salvífico (irrepetível): passagem do Mar Vermelho / libertação do Egito – faraó e suas tropas; ceias pascais das gerações sucessivas, como obediência ao mandamento divino. Os comensais (aqueles que comem da ceia) tornam-se participantes do acontecimento salvífico, realizando o memorial.
Entretanto, os termos memória ou memorial, usados por Jesus na última ceia, tem um valor teológico que ultrapassa a mera recordação mental. Sem memória, o ser humano não realiza o encontro libertador com o Mistério. Não se trata, nesse caso, da lembrança saudosista de um fato. Para entender isso, é importante recuperar o ensinamento do rabino Gamaliel, mestre de Paulo, que ajuda a compreender o sentido da palavra memorial:
“De geração em geração, cada um é obrigado a ver-se a si próprio como tendo ele mesmo saído do Egito, como foi dito ‘Naquele dia, anunciarás a teu filho, dizendo: Em virtude disto, o Senhor fez por mim o que ele fez, quando saí do Egito (Ex 13,8). O Santo – bendito seja ele – remiu não só nossos pais, mas remiu também a nós como a eles, conforme foi dito: ‘E nos fez sair de lá, para nos introduzir e nos dar a terra que tinha jurado a nossos pais’” .
Segundo Gamaliel, o memorial da páscoa judaica, celebrada por todas as gerações até os dias de hoje leva os comensais a:
• Verem-se a si próprios como saídos do Egito;
• Reconhecerem-se como tirados por Deus da terra da escravidão, juntos com os hebreus que atravessaram o mar vermelho, e introduzidos por Ele na terra da libertação;
• A expressão “em virtude disto” refere-se aos sinais da ceia pascal judaica: cordeiro imolado, ervas amargas…. Esses sinais da ceia pascal judaica, os mesmos da primeira ceia do povo hebreu, são figura da passagem da terra da escravidão para a terra da libertação;
• Para os participantes da primeira ceia judaica, no Egito, os sinais anteciparam os acontecimentos salvíficos. Para os judeus das gerações sucessivas (até hoje!) os sinais prolongam os acontecimentos tornando-os contemporâneos.
Cada judeu, ao celebrar a ceia como Deus ordenou a Moisés, torna-se hoje libertado da escravidão do Egito. A passagem no mar vermelho é única (evento histórico), não se repete. Mas a ordem de repetição da ceia, que traz a figura dos acontecimentos lá vividos, transporta os comensais aos acontecimentos da salvação (participação, comunhão).
Ao celebrar a páscoa, o judeu atravessa hoje o Mar Vermelho com os “pés da fé”. A salvação atravessa as barreiras do tempo e do espaço e alcança a todos que comem a ceia celebrada em obediência à ordem divina.
1 GIRAUDO, C. Redescobrindo a eucaristia. São Paulo: Loyola, 2002, p. 77. Ler também Dt 6,23ss
Pe. Danilo César dos Santos Lima
Liturgista