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[Artigo] Evangelização e Liturgia – Dom Geovane Luís da Silva, bispo auxiliar de BH

Celebrar e festejar são categorias que evidenciam a dimensão comunitária e ritual da fé cristã – ninguém celebra sozinho ou faz festa para si mesmo, pois “a vida se enfraquece no isolamento e se fortalece na doação e na comunhão

A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium em seu artigo 24 nos introduz no pensamento teológico e pastoral do Papa Francisco sobre a liturgia da Igreja e suas implicações na ação evangelizadora e missionária: “A comunidade evangelizadora jubilosa sabe sempre festejar: celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na Evangelização. No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia. A Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia, que é também celebração da atividade evangelizadora e fonte dum renovado impulso a se dar”.

Aparecem aqui termos teológicos e profundamente significativos para uma justa hermenêutica da ação litúrgica.

O Papa nos diz que ‘a comunidade evangelizadora sabe sempre festejar: celebra e festeja.’. A Igreja celebra com júbilo a salvação e faz festa na presença do Senhor. Celebrar e festejar são categorias que evidenciam a dimensão comunitária e ritual da fé cristã. Ninguém celebra sozinho ou faz festa para si mesmo, pois “a vida se enfraquece no isolamento e se fortalece na doação e na comunhão. Isto é, definitivamente, a missão”[1]). A comunidade que celebra a fé descobre o sentido da sua existência no mundo e se renova no empenho missionário. Isto se dá graças à presença de Cristo na liturgia da Igreja (SC 7), pois é dele que provém toda a força e dinamismo missionário.

Qual o motivo da festa? Aqui o Papa Francisco deixa claro: “celebra e festeja cada pequena vitória, cada passo em frente na Evangelização”[2] . Deste modo evidencia-se que as pequenas vitórias são fruto e expressão da vitória suprema de Cristo “que venceu o mundo e sua permanente conflitualidade, estabelecendo a paz por seu sangue derramado na cruz”.[3] A liturgia da Igreja é profissão de fé no sentido pascal e de união à Páscoa de Cristo que se dá nas pequenas vitórias. Deste modo “Jesus nos deixa a Eucaristia como memória cotidiana da Igreja, que nos introduz cada vez mais na Páscoa (Lc 22,19). A alegria evangelizadora refulge sempre sobre o horizonte da memória agradecida”[4].

A dimensão estética da liturgia também é evidenciada pelo Papa Francisco: “No meio desta exigência diária de fazer avançar o bem, a evangelização jubilosa torna-se beleza na liturgia”.

O quotidiano é o lugar primeiro do encontro com Deus e nele se insere a liturgia da Igreja, como espaço privilegiado para a contemplação da beleza divina. Evidentemente trata-se daquela beleza suprema, o rosto desfigurado e glorioso de Cristo, que dá fundamento aos gestos e palavras da Igreja e não se confunde jamais com o excesso de paramentos, o rubricismo ou o cerimonialismo vazio tão presente nos dias atuais. O excesso de paramentos é sempre expressão de mau gosto; não remetem à beleza suprema, e o rubricismo é muitas vezes sinal de que a liturgia não é expressão do sentimento interior de quem celebra, quer presidindo ou participando.

Para não deixar margens a dúvidas sobre a verdadeira beleza que deve resplandecer na liturgia e a partir da sua celebração, o Papa afirma na sua Exortação Apostólica: “todo cuidado exibicionista da liturgia é expressão evidente de um obscuro mundanismo espiritual que se manifesta hoje em muitas atitudes, mas com a mesma pretensão de dominar o espaço eclesial e transformá-lo numa peça de museu ou numa possessão de poucos”[5] .

Há uma relação intrínseca entre evangelização, liturgia e vida. A beleza do rosto de Cristo deve permear toda a nossa existência e se irradiar nestes momentos, aparentemente distintos, mas intimamente relacionados. O anúncio do Evangelho converge naturalmente para a sua celebração na liturgia e tem implicações diretas na vida de quem o acolhe com abertura de coração. “Toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada”.[6]

O Evangelho proclamado é celebrado ritualmente, mediante símbolos, gestos, palavras e cânticos; ou seja, o Evangelho anunciado se torna sacramento, sinal visível da ternura de Deus agindo no mundo. Nas palavras do Papa ressoa assim: “A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta e reforça interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico da vida diária. A Palavra proclamada, viva e eficaz prepara a recepção do Sacramento e, no Sacramento, essa Palavra alcança a sua máxima eficácia”.[7]

A liturgia bem celebrada é fonte de vida para a comunidade evangelizadora, pois a “Igreja evangeliza e se evangeliza com a beleza da liturgia”. Eis aí um constante desafio para todos nós: Evangelizar e deixar-se evangelizar![8] Celebrar e deixar-se tocar pelo Ressuscitado na liturgia e na vida! Certamente o cuidado com a liturgia exigirá de todos nós um empenho constante para que o Evangelho adquira uma real inserção em nossa vida e nas necessidades concretas da nossa história.[9]

Para explicitar a força transformadora da liturgia, ou melhor, a sua eficácia o Papa recorre à metáfora da ‘fonte’[10] . Segundo ele a “liturgia é também celebração da atividade evangelizadora e fonte de um renovado impulso a se dar”.

Emerge aqui a dimensão espiritual[11] , existencial e social da ação litúrgica da Igreja já expressa na Constituição Conciliar do Vaticano II Sobre a Sagrada Liturgia[12] . Em consonância com o pensamento conciliar o Papa Francisco afirma que a liturgia é fonte de um renovado impulso para a nossa autodoação ao próximo, pois nela, pela ação do Espírito Santo, se atualiza a autodoação de Cristo ao Pai para a salvação da humanidade. A ação litúrgica é a realidade plena de tudo aquilo que ela mesma significa e faz memória: a morte e ressurreição de Jesus. Por isso ela produz, na vida de quem a celebra com fé, um renovado impulso e desejo de doação levando-a “a tocar a carne sofredora de Cristo no povo”[13] . A doação de nós mesmos aos irmãos e irmãs mais sofredores é o critério decisivo para comprovar a verdade da liturgia que celebramos em nossas comunidades, pois uma vida autenticamente litúrgica transforma-se em dom para os outros.

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1Cf. EG 8.10.
2EG 24
3EG 229
4EG 13
5EG Cf. EG 95 nos remete ao ensinamento de Bento XVI na Sacramentum Caritatis 23 quando se trata do ministro que age na pessoa de Cristo.
6EG 174
7EG 174
8EG 174
9EG 95
10 Esta compreensão aparece na SC 10, onde os padres conciliares afirmam: “Todavia, a liturgia é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força”.
11“Ela é a primeira e necessária fonte da espiritualidade da Igreja, dela os fiéis podem haurir o espírito genuinamente cristão” (SC 14).
12Esta referência aos aspectos sociais da liturgia e de suas implicações na vida prática aparece nos seguintes artigos da Constituição Conciliar: “E aos que creem tem o dever de pregar a fé e […], estimulá-los a todas as obras de caridade” (SC 9); “A renovação, na eucaristia, da aliança do Senhor com os homens, solicita e estimula homens, solicita e estimula os fiéis para a imperiosa caridade de Cristo” (SC 10). No segundo capítulo, quando se fala da eucaristia usa-se a expressão vínculo de caridade (cf. SC 47). “Prepara os fiéis do melhor modo possível para receberem frutuosamente a graça, cultuarem devidamente a Deus e praticarem a caridade” (SC 59). “A penitência quaresmal não seja somente interna e individual, mas também externa e social” (SC 110).
13EG 24. 270

 

 

 

 

 

 

 

Dom Geovane Luís da Silva
Bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte

 



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