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[Artigo] Cristão: um profeta ou nada – Padre Junior V. do Amaral, Paróquia Maria, Serva do Senhor

Viver o direito e a justiça na dimensão da fé

O movimento bíblico profético de Israel (do hebraico Nebiim – de Nabi – “profeta”, “porta voz” ou “vidente”) estava integralmente associado ao surgimento e ao desenvolvimento da Monarquia (1000-587 a. C.), que não foi uma forma de governar exclusiva de Canaã (depois Israel – Reino do Norte e Judá – Reino do Sul) e uma experiência inspirada por Deus, mas uma realidade imposta pela vontade de algumas lideranças do povo. Talvez este tenha sido o motivo central de inúmeras contradições, como o desenvolvimento áureo, nos tempos de Davi (1Sm 16-2Sm 6), e a exploração extrema e o culto idolátrico a Baal, nos anos de Manassés (2Rs 21,1-18). A gênese de tudo isso pode ser lida em 1Sm 8,5: “Constituí-nos, pois, agora, um rei sobre nós, para nos julgar, como em todas as nações”. Trata-se de uma imposição que pesa sobre o povo de Deus, uma instituição repleta de mazelas, mas, que, na concepção teológica dos profetas, deveria ser lugar tenente (cumpridor da vontade) de Deus, na vivência e na promoção do direito e da justiça, os atributos fundamentais da governabilidade divina (teocracia).

Deus, em alguns relatos bíblicos, é concebido Rei de Israel, como alguém que governa com cetro de ferro e que reinará sobre Israel todo o sempre (cf. Ex 15,16-18). Em Ex 23,23, Deus promete que seu anjo irá adiante do seu povo, este anjo corresponde ao próprio Deus, que, como forte guerreiro, destruirá seus inimigos (heteus, amorreus, jebuseus). Em Is 45,2, uma releitura de Êxodo, lê-se: “Eu irei adiante de ti, e endireitarei os caminhos tortuosos…”. Deus, nos contextos vitais de Êxodo e Isaías, é considerado Rei guerreiro, Meleq, maior que os reis vizinhos, que conquistaria para si um forte reinado. Contudo, o Deus-rei de Israel se distingue dos outros reis por exigir de seu povo a justiça, a sed%u0101q%u0101h, que, segundo a raiz verbal e o substantivo, sdq (lembrando que o hebraico é uma língua consonantal), pode significar “justiça”, em sentidos: “distributiva”, “retributiva”, “vindicativa”, “justiça social” ou ainda “direitos humanos”. Tal palavra aparece 523 vezes na Bíblia, dando a compreender a imposição da vontade de justiça por parte de Deus. Deus quer a vivência do direito e da justiça. E isso se aplica à vida de todos, sobremaneira dos pobres, que eram explorados e injustiçados.

A justiça, em sentido hebraico, está estritamente ligada à ordem criada por Deus no Gênesis. Violar os princípios éticos da justiça correspondia a atentar contra o sentido incorporado por Deus no mundo, seria uma espécie de idolatria. Deus governa este mundo desde sempre, pois tudo foi criado por Ele. Vale lembrar que os termos justiça e direito, bem como a palavra misericórdia (hesed, em hebraico), aparecem sempre nos contextos da Aliança (berit, em hebraico), estabelecida por Deus. Sua aliança é normativa de vida, de uma harmonia cósmica, uma verdadeira liturgia na qual toda criação convive pacificamente, continuando a beleza da criação de Deus, no respeito aos diretos de cada um, sobretudo, aos direitos fundamentais: a vida, o alimento, a segurança, a moradia, a liberdade, e outros. O Sl 89,14 explicita significativamente o propósito de Deus para seu povo: “Justiça e juízo são a base do teu trono; misericórdia e verdade irão adiante do seu rosto”. Podemos dizer, então, que a justiça é a belíssima liturgia que podemos ofertar a Deus neste mundo, juntamente com as ofertas agradáveis que temos em nossos corações e mãos.

No século VIII a. C., o profetismo bíblico se enriquece singularmente com Amós, o profeta da justiça social, e o sentido da justiça se amplia significativamente. Na restauração dessa justiça, Amós concentra todas as energias para fazer-se arauto da vontade de Deus. Justo seria cumprir os preceitos do Deus de Israel. Mas, Deus manifesta suas reservas ao culto prestado nos santuários, sobretudo cultos prestados por mãos sujas de idolatria, de assassínios e de roubos. Contudo, o problema central não estava no culto de per se, mas no abismo que se abria entre a prática de piedade e a prática de vida. Para Amós, em outras palavras, Deus não aceita as oferendas de quem não pratica a justiça nas relações humanas e sociais. Não há sentido em voltar o coração para Deus, quando o afastamos de nossos irmãos e irmãs. Por sua voz profética, Deus diz: “Odeio e desprezo as festas religiosas que celebrais. Não quero os holocaustos que ofereceis em minha honra” (5,21-22). E ainda: “Corra a equidade como a água da fonte e a justiça como torrente que não seca” (Am 5,24). Para Amós, o que garante e justifica o que o fiel orante pratica, elevando ao céu como preces, é o que ele faz aqui na terra, como justiça, em favor de seu próximo. O culto a Deus só é autêntico quando produz efeitos transformadores no mundo, na vida das pessoas, na sociedade de modo geral. Deus ainda deseja tais efeitos.

A atualidade de Amós, em se tratando da justiça proveniente da profecia, é indiscutível. Trazendo para nosso contexto social, nós, cristãos, somos estes chamados por Deus a produzirmos frutos de justiça, vivendo o direito e a misericórdia, pois muitas vezes, desconectamos o culto a Deus da prática de vida. Esta desconexão é mortal e atroz. Não há como produzir frutos de vida, nas relações plurais e intersubjetivas, fechando-se à interpelação e ao apelo de Deus. Mas há como produzi-los quando conectamos nossa vida à vida das pessoas deste mundo, quando sentimos compaixão, quando nos sentimos responsáveis pela realização de nossos semelhantes. Não há como dizer que só os cristãos fazem o bem neste mundo ou somente nós somos os responsáveis por esta tarefa. Há muitos entre nós, humanos, que sequer professam uma religião e estão integrados integralmente ao projeto de um mundo mais solidário, sustentável, humano e, por que não dizer, fraterno. Mas a nós, cristãos, é-nos exigido, ademais, pela especificidade de nossa fé, algo a mais, um plus, uma pitada a mais de sal, de sabor, de sentido de vida.

Mediante tais apelos de Deus, que fez surgir profetas e profetisas na esteira do tempo e no caminho humanos, somos convidados, convocados e desinstalados por Ele de nosso comodismo. Comodismos inúmeros: pessoais, comunitários, sociais e eclesiais. Somos interpelados pelo Deus de Israel e da história, que nos criou à sua imagem e semelhança (Gn 1,26), a não cruzarmos os braços ante às indiferenças, corrupções, imoralidades e maquinações perversas que ameaçam a humanidade de cada homem e mulher, de cada criança e idoso. O cristão de hoje é convocado a ser um profeta ou a não ser nada! Somos aviltados por Deus a não nos calarmos, a não nos deixarmos esmorecer em nossa fé diante dos esquemas cruéis de uma política de chacais, que querem nos tornar presas fáceis, tornando-nos carniça para encher suas barrigas avarentas e insaciáveis. É preciso, como Igreja, como batizados, como presbíteros e fiéis nos levantarmos e desarmamos a “cilada que nos armara o caçador” (cf. Sl 123,7).

Que a exemplo do Papa Francisco, hoje mensageiro da justiça e do direito, tal qual o profeta Amós, possamos conjugar harmonicamente nosso culto a Deus, nossas orações, sacrifícios e jejuns, recitações de terços, rezas de novenas a uma justiça social e política para todos, a fim de que todos, indistintamente, tenham vida e vida em abundância (Jo 10,10b). Que na dimensão de nossa fé não faltem o direito, a justiça e a misericórdia de Deus.

 

 

 

 

 

Junior Vasconcelos do Amaral, vigário da Paróquia Maria, Serva do Senhor
doutor em Teologia Sistemática pela FAJE/BH (Faculdade Jesuíta de Filosofia
e Teologia), professor de Bíblia na PUC-Minas, presbítero a serviço da
Arquidiocese de Belo Horizonte, MG.

 



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