Flávia Costa Reis[1]
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Hebert Gerson Soares Júnior[2]
O Santuário Arquidiocesano de Santa Luzia, localizado em município homônimo da região metropolitana de Belo Horizonte, tem suas origens em capela erguida no século XVIII, ainda no período fausto da mineração aurífera. A ocupação da região teria se iniciado no ano de 1692, com a instalação do povoado de Bicas, às margens do Rio das Velhas, por José Corrêa de Miranda. Segundo a tradição oral, esse arraial, ainda incipiente, teria sofrido com inundação e seus habitantes o reconstruíram na parte mais alta da região, onde hoje se localiza o centro urbano da cidade, recebendo denominação de Bom Retiro.
O arraial se desenvolveu como ponto estratégico de comércio, possuindo porto às margens do Rio das Velhas, à Rua do Comércio, por onde circulava grande volume de mercadorias destinadas à toda região mineradora. Com economia fortalecida pelo comércio, acredita-se que, mesmo após a decadência da mineração aurífera, Santa Luzia não tenha caído no ostracismo, como muitas localidades vizinhas. Além disso, teria se tornado, desde cedo, importante centro cultural, com atividades ligadas ao teatro, à música e à literatura.
O local ainda é reconhecido por ter participado ativamente da vida política da província, sendo notória sua atuação na Revolução Liberal de 1842, e recebendo, no ano de 1881, a visita do Imperador Dom Pedro II, sendo agraciado, em seguida, com o título de Cidade Imperial.
Com relação à ereção da capela, e a subsequente alteração toponímica da localidade, existe versão que conta sobre o aparecimento de uma imagem de Santa Luzia às margens do rio, após uma enchente, encontrada por pescadores, sendo construída uma pequena capela em sua honra. O local ficou, então, conhecido pelos milagres da Santa, atraindo grande número de devotos em busca de cura e consolo para seus males. Essa primeira capela teria sido erigida na década de 1720 por iniciativa da população e sob a liderança do Capitão-mor João Ferreira dos Santos, sendo, à princípio, filial da Freguesia de Santo Antônio da Roça Grande, permanecendo nessa condição até o ano de 1744, quando o Bispo do Rio de Janeiro, Dom Frei João da Cruz, decretou a mudança da sede para Santa Luzia.
Vários fatores concorreram para que essa mudança fosse determinada – a igreja de Santo Antônio era pequena, não tinha os paramentos necessários para as celebrações e sofria com as muitas enchentes do Rio das Velhas. Entretanto, ela desagradou aos moradores de Roça Grande, que apelaram ao Desembargo do Paço da Bahia e conseguiram sentença favorável ao retorno da sede da freguesia à localidade, o que ocorreu em 1748. Logo no ano seguinte, porém, D. Manuel da Cruz, primeiro bispo de Mariana, apelou à Coroa para que se procedesse novamente à mudança, conforme o exposto no documento a seguir:
[…] como os fundamentos que moveram o meu Antecessor a fazer tal mudança são certos por informações que tenho do Pároco e mais pessoas fidedignas e desinteressadas daquela Freguesia, sendo notória em tôda ela a indecência do lugar em que estava a Matriz antiga e contra o que mandam as Constituições dêste Bispado, represento a V. Majestade seja servido, por evitar demandas, haver por bem que a Matriz Seja no Arraial de Santa Luzia, na forma que mandou o meu Antecessor, por ser a Igreja daquele arraial nova, grande, e bem paramentada, não tendo nada disto a Matriz antiga. (D. Manuel da Cruz, 1749. Apud. TRINDADE, 1945, p. 269-270).
O assunto se estendeu até 1779, quando foi emitida Ordem Régia para que se transferisse definitivamente a sede da freguesia para Santa Luzia, reduzindo Santo Antônio da Roça Grande à capela curada.
Acredita-se que a construção da atual igreja, em substituição à antiga capela, tenha se iniciado já em 1744, possivelmente aproveitando-se a antiga edificação como capela-mor, como ocorreu com tantas outras igrejas ampliadas nesse período. No ano de 1748, Domingos Martins da Cunha obteve permissão para o custeio das obras, que já deviam estar bem adiantadas, pois, segundo o documento citado anteriormente, de 1749, já tinha condições de ser a nova Matriz. A tradição aponta o ano de 1778 como a conclusão das obras. De fato, nesse mesmo ano, o Santíssimo Sacramento foi transladado da antiga Matriz de Roça Grande e o templo recebeu a benção oficial.
Apesar de não se localizar informações sobre o autor do risco da igreja, Oliveira (1956, p. 2) informa que, entre 1760 e 1776, o sargento Joaquim Pacheco Ribeiro, um dos promotores da construção da nova edificação, contratou os serviços “de moldura e de talhe” com os artífices Felipe Vieira e Francisco de Lima Cerqueira, sendo que, sobre esse último, não se tem conhecimento de registros documentais de sua atuação como escultor, tendo se notabilizado como arquiteto, mestre-pedreiro e canteiro. Segundo pesquisa realizada pelo Inventário do Patrimônio Cultural (2004), a ornamentação interior foi executada em duas etapas: A primeira, entre os anos 1745/76, compreendendo os altares de Santa Luzia, São José e de Nossa Senhora do Rosário, a tarja do arco-cruzeiro e os apainelados da capela-mor. A segunda incluiu os quatro outros retábulos da nave, os púlpitos e as pinturas artísticas dos tetos, e foi certamente elaborada entre os anos 1780/1840 por artistas ainda não identificados, alguns já com estilo neoclássico.
A talha da capela-mor e a tarja do arco-cruzeiro foram executadas pelo referido escultor e entalhador Felipe Vieira, com o auxílio de outros oficiais. Segundo Tavares (IEPHA, 1975), o retábulo-mor tem excepcional qualidade e apresenta características do estilo Dom João V, com a presença de colunas torsas e terço inferior estriado, coroamento em dossel e sanefa[3], além de estatutária no coroamento (esculturas de anjos e o grupo da Santíssima Trindade). Existe, ainda a hipótese da contribuição do Mestre Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, em sua execução, quando ainda aprendiz.
As pinturas do forro e da capela-mor foram atribuídas, pelo especialista Célio Macedo Alves (In: MELLO, 2016, p.116), ao pintor e policromador Joaquim Gonçalves da Rocha, artista atuante em Sabará em proximidades no início do século XIX, com obra comprovada na Igreja da Ordem Terceira do Carmo de Sabará, tanto nas pinturas de forro como na policromia de peças de imaginária. O artista teria atuado também no Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas, na mesma cidade de Santa Luzia, executando a pintura do forro da Capela, com data de ajuste em 1800. O autor conjectura que a execução do forro na Matriz de Santa Luzia pode ter se dado, portanto, em período próximo a esse ano.
As obras são pinturas em perspectiva, ocorridas na segunda fase do período rococó, com prolongamento da arquitetura, apresentando alguns de seus elementos mais recorrentes – muro-parapeito, pilastras misuladas e balcões, arranjos florais, rocalhas e guirlandas de flores, rolos de nuvens e querubins enquadrando a visão central. Na capela-mor, essa última tem a representação de Santa Luzia e, na nave, a Assunção de Nossa Senhora, ladeada pelos santos Doutores da Igreja, São Jerônimo, Santo Agostinho, Santo Ambrósio e o Papa Gregório, posicionados no muro-parapeito.
No forro da sacristia, destaca-se a cena da morte de São João Nepomuceno, enquanto no forro sob o coro, três painéis representam passagens da vida de Jesus Cristo. Pinturas mais recentes na parede arco-cruzeiro representam os quatro Evangelistas entre rocalhas e concheados e, acima, o tema do Santíssimo Sacramento.
Ao longo dos séculos XIX e XX a edificação passou por diversas intervenções arquitetônicas e artísticas, algumas alterando sua fisionomia original, outras promovendo a sua conservação. Ainda no XIX, no ano de 1849, relatório do pároco Padre Manoel Pereira e Miranda, descrevia ao Presidente da Província a situação precária em que se encontrava a igreja, onde o “… fronte Aspício desta Matris se acha todo demolido…”. Falava, também, de problemas com goteiras, acusando a necessidade de se trocar todo o telhado.
Apesar da situação relatada pelo pároco, as pesquisas realizadas pelo Inventário do Patrimônio Cultural apontam que a fachada principal somente recebeu sua nova configuração no século XX:
As técnicas da alvenaria de pedra e da estrutura autônoma de madeira, com vedações de adobe e pau-a-pique, foram combinadas, tendo sido o átrio e as torres reconstruídos em tijolos maciços em 1909 e 1917, quando foi inteiramente modificada a fachada principal, hoje composta de mescla de detalhes maneiristas e soluções do rococó mineiro.
Fotografia mostra que a antiga fachada seguia a das antigas matrizes, como as de Santo Amaro de Brumal, com duas janelas no coro, portada única, e torres com telhado pontiagudo. O frontão original havia sido alterado pela introdução de linhas curvas, como ocorreu na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Sabará.
Em relação ao sistema construtivo, esclarece que a variação ocorre em Santa Luzia pela presença de alvenaria de pedra na nave, corredores e sacristia, e com estrutura em madeira e barro na capela-mor, tribunas e consistório.
Apesar das alterações no frontispício, pode-se afirmar que a edificação ainda guarda a maior parte das características arquitetônicas e decorativas do período colonial. Na mencionada pesquisa do Inventário do Patrimônio Cultural da Arquidiocese de Belo Horizonte, a edificação é descrita com partido arquitetônico comum à arquitetura religiosa luso-brasileira setecentista, naquele grupo conhecido por “primeiras matrizes mineiras”:
Consiste em templo com duas torres e dois volumes quadrangulares justapostos, destinados a abrigar a nave e a capela-mor, ladeadas por corredores encimados por tribunas. Trata-se de composição de fundo maneirista que Germain Bazin identifica como fase “clássica” da arquitetura religiosa mineira setecentista. (BAZIN, 1983). Observa-se, ainda, a típica disposição volumétrica descendente, na qual se destacam as torres mais altas seguidas pelo corpo da igreja, em altura intermediária, e pela capela-mor mais baixa.
Atualmente a igreja encontra-se implantada em adro elevado, acessado por grande escadaria frontal e circundado por guarda-corpo em balaustrada de cimento pré-moldado. O retângulo central da fachada frontal é segmentado em níveis e delimitado lateralmente pelas torres, cujos cunhais também se apresentam em ressalto. O nível térreo possui a porta principal, em arco pleno, ladeada por janelas em guilhotina e sobreverga triangular. O coroamento da portada, entretanto, ultrapassa a moldura escalonada que separa os níveis, seguindo em composição triangular, no centro da qual se encontra a inscrição “AN.oDE1778”. Outras duas janelas rasgadas na altura do coro se apresentam guarnecidas de guarda-corpo simples, em ferro, verga em arco abatido, e vedação em duas folhas almofadadas. Acima e ao centro, se insere o óculo circular, e à esquerda, no quadrante da extrema esquerda (observador de frente para a igreja), o relógio. No coroamento da composição, o frontão triangular abriga dois pináculos nas empenas e o remate em cruz de metal. Nas extremidades, se inserem os campanários também moldurados, com sineiras em arco abatido e coroamento em coruchéus[4] alongados, em alvenaria, com decoração moldurada e com pináculos.
A planta organiza-se em dois retângulos alongados e intercomunicantes por meio do arco-cruzeiro, que conecta nave e capela-mor. Essas são dotadas de corredores laterais, nos quais se inserem os retábulos e, no segundo pavimento, as tribunas. Ao fundo, a sacristia se apresenta de modo transversal, e sobre ela o consistório.
O conjunto litúrgico-ornamental é formado por sete altares – retábulo-mor e seis altares laterais, painéis nas ilhargas da capela-mor e laterais do arco-cruzeiro, púlpitos e forros com pintura figurativa na nave, capela-mor, sacristia e átrio. De acordo com a ficha de inventário da igreja, a estrutura da decoração interna segue aquela elaborada entre os anos 1740-60 para a Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Catas Altas, principalmente as portas encimadas pelos painéis nas laterais do arco-cruzeiro, em disposição linear.
Em seu calendário festivo, destacam-se festas de grande importância na comunidade local, como as tradicionais celebrações da Semana Santa; a Festa do Divino Espírito Santo, comemorada cinquenta dias após a Páscoa, durante quatro dias; e, finalmente, o Jubileu de Santa Luzia, no dia 13 de dezembro, sendo a maior e mais importante festa da cidade, atraindo grande número de romeiros.
Por sua importância cultural como monumento de significação histórica e artística, a Matriz foi tombada pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais – IEPHA-MG, conforme Decreto nº 17.779, de 09 de março de 1976, e pela Lei Orgânica do Município de Santa Luzia, promulgada em 1º de setembro de 2000. Como tradicional centro de peregrinação católica, foi elevada a Santuário Arquidiocesano por decreto do Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte, de 28 de outubro de 2000.,
Referências bibliográficas e fontes:
ALVES, Célio Macedo. Joaquim Gonçalves da Rocha, sua oficina e a pintura ilusionista em igrejas de Sabará, Caeté e Santa Luzia. In: MELLO, Magno Moraes (org.). Desenhando palavras e construindo geometrias; espaço escrito e espaço pintado no tempo barroco. Belo Horizonte: Clio Gestão Cultural e Editora, 2016.
ÁVILA, Affonso. Matriz de Santa Luzia. Relatório do processo de tombamento pelo IEPHA. Belo Horizonte, 1976.
CORONA, Carlos Eduardo; LEMOS, Carlos A. C. Dicionário da Arquitetura Brasileira. São Paulo: Romano Guerra, 2017. 2ª ed. (Coleção RG fac-símile, 3).
INVENTÁRIO do Patrimônio Cultural da Arquidiocese de Belo Horizonte: Igreja Matriz de Santa Luzia (MG). Coordenação: Luiz Gonzaga Teixeira. Belo Horizonte: Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.
OLIVEIRA, Tibúrcio de. Relíquia do passado. Estado de Minas, Belo Horizonte, 09 dez. 1956. p.2.
TAVARES, Myriam Ribeiro Silva. Processo de tombamento da Igreja Matriz de Santa Luzia: informe histórico-ornamental. Belo Horizonte: IEPHA-MG, 20 de junho de 1975.
TRINDADE, Raimundo Cônego. Instituições de Igrejas no Bispado de Mariana. Rio de Janeiro: MES/IPHAN, 1945.
[1] Possui graduação em História pela PUC-Minas (2007), e atualmente é aluna do mestrado em Artes da Escola de Belas-Artes da UFMG. Integra o corpo técnico de colaboradores do Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte/Inventário do Patrimônio Cultural.
[2] Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela PUC-Minas (2014), e pós-graduação em Patologia, Terapia e Manutenção de Edificações (2018) pela mesma universidade. Atualmente é aluno do mestrado em Artes da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais da UFMG. Integra o corpo técnico de colaboradores do Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte/Inventário do Patrimônio Cultural.
[3] Segundo a obra Barroco Mineiro: Glossário de Arquitetura e Ornamentação (ÁVILA; GONTIJO; MACHADO, 1979, p. 175) o termo sanefa refere-se a: “Peça saliente de proteção e ornamento, colocada ao alto do retábulo à maneira de sanefa de cortina. O mesmo que baldaquim ou guarda-pó. ”
[4] O termo ”coruchéu”, segundo do Dicionário da Arquitetura Brasileira (CORONA & LEMOS, 2017), pode ser definido como a parte superior das torres, flecha ou pirâmide aguda no ponto mais alto dos edifícios.