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[Artigo] Celebrar a misericórdia – Padre Márcio Pimentel, Secretariado Arquidiocesano de Liturgia de Belo Horizonte


Na Liturgia temos a continuidade da História da Salvação, cujo cume se deu na pessoa de Jesus de Nazaré, a quem o Papa chama de “Rosto da Misericórdia”. Falar em história é dizer dos processos pelos quais a humanidade passa em contato com o mundo, integrado à criação inteira. Todos sabemos que o ser humano, homem e mulher, participa da ordem da criação, cuja bondade foi anunciada pelo próprio Deus. Na verdade, a tradição cristã católica reconhece no ser humano a obra prima de Deus, a ponto de nele reconhecermos a imagem e semelhança divinas. Nesse prosseguir da vida, em seu contato com o mundo e com as outras pessoas e criaturas, Deus assistiu-nos. Fê-lo acompanhando-nos de perto, amando-nos, dialogando conosco. E neste caminhar com a humanidade, foi-se pouco a pouco mostrando, dando-se a conhecer e mostrando sua face.

Deus assumiu nosso ritmo de modo que pode insinuar-se por trás das mais variadas experiências. Desde a mais excruciante dor ao mais vultuoso prazer a humanidade pôde e pode ainda encontrar a Deus. Este encontro não é, no entanto, fruto de nossas buscas, mas deduz-se da iniciativa divina. Deus nos quer encontrar, faz-se disponível. Antes, até, nos busca. A tradição rabínica interpreta que Deus criou o mundo como um lugar para o encontro com Ele. Esta mesma tradição reconhece que o ser humano foi concebido como uma criatura que estivesse em posição de dialogar com seu criador. A Sagrada Escritura toda, do início ao fim, é a narrativa desta busca de Deus pela humanidade para com ela dividir sua presença e sua palavra.

A história da gente é o entremeio entre o Paraíso e a Parusia. Nesta jornada que vai das origens à finalização do mundo, Deus nos busca. Os cristãos cremos que esta procura pela humanidade, sua interlocutora, custou-lhe o Filho. A Escritura diz: “não poupou seu Filho único”. Esta é uma maneira de falar do estremado empenho de Deus em nos ter ao seu lado, porque foi para isso exatamente que fomos criados. A Salvação consiste em Deus não permitir que nos percamos entre uma estação e que cheguemos ilesos – todos, a partir de seu desejo – ao destino que para nós forjou: sua companhia. Deste modo, Jesus, seu Filho, Verbo encarnado, tornou-se Pontífice entre as Origens e a Parusia. Isto é, o responsável por construir as pontes necessárias para que atravessássemos incólumes o mar bravio da existência, fieis à nossa fonte que é Deus mesmo, como nosso criador, e também ao nosso destino, que é a comunhão plena com Ele.

O Mistério de sua morte e ressurreição é o corolário de sua existência entregue ao mundo, revelando o rosto misericordioso de Deus. Esta visita divina realizada na carne humana, acontecimento pelo qual o Verbo da Vida pode ser visto e apalpado, conforme nos lembra São João em sua carta, equivale à própria misericórdia de Deus em ação. E este envolvimento na história de Jesus narrada em nossas liturgias, de modo consciente e ativo mediante os ritos, símbolos e preces faz com que os desígnios de Deus cheguem ao seu cumprimento em cada fiel. Deste modo, as celebrações da Igreja integram o próprio propósito de Deus para a humanidade, constituindo-se um momento misericordioso desta mesma História.

A Liturgia como realização da misericórdia – I

Jesus é o rosto misericordioso do Pai, nos diz o Papa Francisco. De per si, esta afirmação existe um reposicionamento da Igreja perante as pessoas, de modo a ser ela mesma porque Corpo de Cristo, um ícone desta misericórdia. A celebração da fé realiza a Igreja, não só no sentido de “publicar” sua existência, mas de constitui-la real dotando-a de concretude carnal. Há uma similaridade entre a encarnação do Verbo de Deus e aquilo que se dá na Liturgia celebrada, quando, este mesmo Verbo assume nossa carne mediante os ritos e preces da comunidade. Afinal, conforme nos lembra o Concílio ao tratar da raiz de toda ministerialidade e sacramentalidade da Igreja em relação ao culto na SC 7:

“Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua igreja, especialmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa, quer na pessoa do ministro – «O que se oferece agora pelo ministério sacerdotal é o mesmo que se ofereceu na Cruz» (20) -quer e sobretudo sob as espécies eucarísticas. Está presente com o seu dinamismo nos Sacramentos, de modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo que batiza (21). Está presente na sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada Escritura. Está presente, enfim, quando a Igreja reza e canta, Ele que prometeu: «Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, Eu estou no meio deles» (Mt. 18,20).”

 

 

 

 

 

 

 

É no culto, sobretudo, que a misericórdia de Deus deve se fazer notar uma vez que é nele que se pode haurir o verdadeiro espírito cristão. Pela Liturgia, Deus nos fala como membros de seu Povo, concedendo-nos um vínculo de tal intensidade que nos constitui membros de um mesmo Corpo, pela ação do Espírito. Esta dinâmica trinitária que se faz notar em toda celebração do Mistério de Cristo e se derrama em nossos corações é que gera a Igreja para o mundo. Uma Igreja que é ícone de Cristo, e por consequência, resplandecente da misericórdia e compaixão divinas, de modo que mantenha “sua identidade de mediação salvífica, que é, afinal, o sentido de sua existência.”1

Concretamente, como isso se dá? Esta pergunta é deveras importante, sobretudo quando o Papa Francisco nos desafia como Igreja a assumirmos um lugar significativo no mundo atual, cujo grande risco

“é com sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes”.2

 

 

 

 

 

 

 

Uma vez que se aproxima a clausura do Ano da Jubilar, propomo-nos aprofundar a questão, indagando-nos sobre em que medida a Liturgia, primeiro lugar a partir do qual, impregnados com o Evangelho e configurados a Cristo, podemos experimentar a misericórdia do Senhor. Efetivamente, será também uma contribuição na linha da reflexão cristológica ofertada na e a partir da Liturgia, conforme temos abordado a alguns meses.



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