A Santidade da Música Litúrgica: o canto dos Salmos
A Instrução Musicam Sacram nos diz que o canto litúrgico deve “exprimir o Mistério de Cristo”.[1] Somente um canto que revele e realize Cristo em nós pode ser considerado apto à Liturgia, cujo objetivo é manifestá-lo como também revelar a identidade da própria Igreja[2]: um Mistério que nela (a Liturgia) é “anunciado, saboreado e vivido.[3]” Somente um canto dessa natureza será capaz de “nos conduzir até à medida da idade da plenitude de Cristo”.[4]
Por essa razão, desde sempre a Igreja adotou como repertório próprio, o Saltério. No começo, tendo-o como inspiração fundamental para seus hinos e depois utilizando-os na própria celebração.[5] Em sua “Breve história de la música sacra” Luigi Garbini insiste no fato de que os Salmos se tornam normativos para a compreensão da vida cristã.[6] Sobre isso, dão testemunho os Santos Padres, com destaque para Agostinho, que atrelava ao canto dos salmos a própria existência cristã: “Quem canta e trabalha salmodia com a cítara e a lira”[7]. Houve uma época, inclusive, em que se proibiu qualquer outro canto na Liturgia cristã que não fosse a própria Sagrada Escritura[8].
Tudo isso se diz por que “A Igreja exprime a santidade que lhe provém de Cristo quando reunida num só corpo pelo Espírito Santo, que santifica e dá vida (…).”[9] Podemos falar aqui de um salto de qualidade do sacro ao santo[10]. A música litúrgica não é uma composição com conteúdo meramente religioso, mas claramente destinada ao culto. “Na música para a liturgia, a beleza sonora não é o efeito de uma arte humana que se auto compraz e que, por isso, se auto celebra, mas é o eco da glória divina que se revela”[11]; faz despontar na assembleia litúrgica o “Sol do Oriente”[12].
Nesses cantos (os salmos), encontra-se elaborado com um doce prazer: tudo o que a lei, os profetas e até os próprios evangelhos ordenam. Deus é dado a conhecer, os ídolos são postos ao ridículo; a fé é ricamente afirmada, a infidelidade é rejeitada; recomenda-se a justiça, proíbe-se a iniquidade; a misericórdia é louvada, a crueldade é abominada; exige-se a verdade, condena-se a mentira; a fraude é acusada, a inocência é repleta de elogios; a soberba é humilhada, a humildade é exaltada; prega-se a paciência, promove-se a paz; suplica-se a proteção contra os inimigos, promete-se o castigo deles; a esperança é alimentada, e, o que é muito mais importante do que tudo isso, cantam-se os mistérios de Cristo.
De fato, narra-se a geração de Jesus, o abandono do povo ímpio e a herança dos gentios: cantam-se os milagres de Cristo, mostra-se sua paixão venerável, sua ressurreição gloriosa, assim como seu sentar-se à direita do Pai. Além disso, manifesta-se a vinda do Senhor pelo fogo e o terrível juízo dos vivos e dos mortos. O que mais? Revela-se, também o envio do Espírito criador e a renovação da terra: depois de tudo isso, virá a glória do Senhor, o reino sempiterno dos justos e o perene suplício dos ímpios [13].
A escolha pelo Saltério como Hinário do povo de Deus nos primeiros séculos do cristianismo se deve a muitos fatores, dentre eles a herança judaica, em que o livro dos Salmos é considerado o livro de orações e preces por excelência[14]. Por meio deles, a assembleia litúrgica fala ao seu Senhor, mas também o escuta na própria resposta que lhe eleva. Assim, já se entende desde o início a primazia do texto sobre a melodia, no que se refere ao canto litúrgico.
Sendo o canto litúrgico expressão de fé, é de máxima importância o texto: ser um texto literalmente correto, expressão de fé da Igreja. Por isso não nos deve estranhar a prescrição de que os textos devem ser aprovados pela Conferência Episcopal (IGMR 26 e 56).
Na prática, a tradição litúrgica da Igreja latina optou por textos bíblicos em quase sua maioria. Também há alguns textos de cantos que entraram na liturgia católica sem ser bíblicos, e que por sua grande tradição pedem ser conservados. Por exemplo: “Gloria in excelsis Deo”; “Ubi caritas amor”, “Victma paschali laudes”, “Veni Sancte Spiritus”…[15].
Por essa razão, Antonio Alcade insiste, na linha de Nicetas de Remesiana: Os cantos na celebração litúrgica devem ser confessores da fé (…).
Teremos que superar o nível dos cantos informantes da fé. Esses são cantos que – como o jornalista-repórter – nos dizem coisas em seus textos referentes à fé, mas não nos implicam nela. Teremos de passar da didática à expressão da fé, da informação à mistagogia da fé, de conhecer a fé a abraçá-la com prazer, quer dizer, que sejam cantos que, por seu texto, apoiado por uma boa melodia, nos permitam dar o passo do implícito ao explícito, de uma fé sociológica a uma fé vivencial (…)[16].
Pela participação no canto da fé, os fiéis adentram no Mistério de Cristo, experimentam-no e exprimem-no. Jugmann em sua famosa obra Missarum Solemnia, no qual desnuda as origens e desenvolvimento da missa com o passar dos séculos nos diz: “Dentro da própria ação litúrgica, a participação do povo expressava-se principalmente pelo fato de que ele não escutava somente em silêncio as orações do sacerdote, mas que as confirmava também através de sua aclamação”.
Desde os tempos antigos, também fazia parte dos direitos do povo, certo número de textos hínicos que aumentava aos poucos. O mais venerável dentre eles é o Sanctus com o Benedictus, que foi também o canto que por mais tempo continuou sendo do povo. Igualmente antigos eram os versículos responsoriais que se cantavam na forma de refrões depois de cada verso do salmo entre as leituras 1].
Deve-se observar as considerações de Paulo VI na carta Laudis Canticum, sobre a importância da oração dos Salmos na Igreja:
Acima de tudo, a oração dos salmos, que segue de perto e afirma a ação de Deus na história da salvação, deve ser tomado com amor renovado para o povo de Deus. Para que isso seja feito mais facilmente, é necessário que se promova diligentemente entre o clero um entendimento mais profundo dos Salmos, segundo o sentido com o qual são cantados na liturgia, e que deles tomem parte todos os fiéis por meio de uma catequese adequada.
É que ensina Felice Rinaldi a respeito das funções rituais no uso litúrgico dos Salmos:
Salmos como proclamação pública da Palavra de Deus;
Salmos como eco e comentário da Palavra de Deus;
Salmos como manducação pessoal da Palavra de Deus;
Salmos como oração comum;
Salmos como definição de um mistério litúrgico que vem celebrado;
Salmos como comentário/acompanhamento de um rito;
Salmo como festa do Povo de Deus [18].
11 Instrução Liturgica e Instaurationes, n. 3c, em que se fala da importância dos textos litúrgicos compostos pela Igreja.
12 SC 2.
13 Carta Apostólica Vicesimus Quintus Annus, n. 9.
14 Idem.
15 Cf. GELINEAU, J. O Canto dos Salmos. In. GELINEAU, J. Em vossas assembleias. São Paulo: Edições Paulinas, 1973, p.235.
16 Cf. GARBINI, Luigi. Breve historia de la música. Madrid: Alianza Editorial, 2009, p. 44ss.
17 Comentário ao Salmo 97.
18 Cf. I Concílio de Braga, ano 561, n. 12. In. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, n. 5157.
19 Carta Apostólica Vicesimus Quintus Anus,n.9.
20 LIBERTO, GIUSEPPE. Cantare il MIstero, p. 65.
21 LIBERTO, GIUSEPPE. Cantare il Mistero, p. 67.
22 Cf. Lc 1,78.
23 Nicetas de Remesiana. In. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, n. 2689.
24 Cf. Tehilim et Ratzon. Buenos Aires: Editorial Perspectivas, 2008, p. xiii.
25 BABURÉS, Joan. El canto litúrgico. Perspectivas atuales. In. VV.AA. La voz del Canto Liturgico. Cuaderno Phase. Barcelona: Centre de Pastoral Liturgica, 2003, p. 27.
26 ALCADE, Antonio. La Salud del Canto Litúrgico. In. VV.AA. La voz del Canto Liturgico. Cuaderno Phase. Barcelona: Centre de Pastoral Liturgica, 2003, p.42.
27 JUGMANN, J. A. Missarum Solemnia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 243-244.
28 RAINOLDI, Felice. Il miele dalla pietra. Guida litúrgico-pastorale al canto dei Salmi. Roma: CLV Edizioni Liturgiche Roma, 2002, p. 69.
Padre Márcio Pimentel
Liturgista