O Tempo Quaresmal é o mais exigente Retiro, com o qual devemos estar comprometidos, todos os anos. A Liturgia da Igreja reza e ensina que na Quaresma o Pai reabre para a Igreja “a estrada do Êxodo, para que ela (…) humildemente tome consciência de sua vocação como povo da aliança.”1
Essa oração estabelece a significação mais profunda do Tempo Quaresmal, situando-a no quadro do acontecimento pascal. Assim como o povo de Deus peregrinou quarenta anos no deserto após a libertação do jugo egípcio, purificando seus hábitos, atitudes, pensamentos, sentimentos e ações, a fim de que estivesse apto a firmar com Deus o pacto, também a Igreja caminha – espiritualmente – pelo deserto no intuito de ser restituída como povo da aliança. Durante este período, o deserto é recriado, sobretudo, mediante a sobriedade e silêncio nas celebrações e os quarenta anos expressos nos quarenta dias necessários à intensa penitência e conversão do coração.
Assim como se deseja que um Retiro Espiritual recrie o ânimo e o vigor no testemunho do Evangelho, a Quaresma orienta-nos para um profundo despertar do senso batismal, que se exprimirá na Renovação das Promessas Batismais realizadas na Celebração da Vigília Pascal, durante o Tríduo Sacro. A experiência da via quaresmal é fundamental para que, na fidelidade, a assembleia santa responda à exortação do Apóstolo: “Será que ignorais que todos nós, batizados em Jesus Cristo, fomos na sua morte que fomos batizados? (…) pois se fomos identificados a Jesus Cristo por uma morte semelhante à sua, seremos semelhantes a ele também pela ressurreição.”
É importante ressaltar que a morte de Cristo é um evento “filial” conforme comenta Françõis-Xavier Durwell.2 O autor compreende que seria sombrio demais atribuir a morte de Jesus à causa de nossos pecados, no sentido de que “Deus o colocou em lugar de nossos pecados, atribuindo a ele a culpabilidade universal, transformando-o na encarnação do pecado, ‘o homem feito pecado’. Jesus teria esgotado, por seus sofrimentos, as exigências da justiça divina, até a experiência do inferno, do abandono, da rejeição de Deus.”3 E essa teologia – superada – tem encontrado, de novo, espaço entre alguns bancos de nossas igrejas.
É superada porque a missão do Filho entre nós foi e continua sendo a condução de toda pessoa à dignidade de ser chamado “Filho de Deus” por adoção. Sua vitória sobre o pecado e a morte foi a condição sine qua non para que se chegasse a essa conclusão salvífica. Usando ainda a terminologia do autor, a morte de Jesus foi uma “morte glorificante” porque por ela seu Espírito nos foi comunicado, como muito bem nos relata João em seu Evangelho. E esse Espírito é Espírito de filiação.4 A morte de Jesus da qual participamos pelo Batismo, conforme nos lembra Paulo, significou sua entrada na plenitude do Pai. Quando celebramos – sobretudo na Quaresma em que acentuamos a dimensão de nossa mortalidade ou finitude – unimo-nos a Cristo nesta experiência e assumimos nEle e dEle a mesma dinâmica de passar deste mundo para o Pai. Morremos como ele morreu, para ressuscitarmos como Ele ressuscitou: como filhos no Filho. Filhos que assumem sua vida redentora. Assim, tem muita razão o mesmo Prefácio V da Quaresma: “é justo e necessário (…) louvar-vos, Pai Santo, rico em misericórdia, e bendizer o vosso nome, enquanto caminhamos para a Páscoa, seguindo as pegadas de Jesus Cristo, vosso Filho e Senhor nosso, mestre e modelo de humanidade, reconciliada e pacificada no amor.”
De fato, a Quaresma é o melhor e mais importante Retiro que um cristão deve experimentar.
Pe. Márcio Pimentel
Liturgista
1Prefácio da Quaresma
2Cf. DURWELL, Françõis-Xavier. A morte do Filho. O mistério de Jesus e do homem. São Paulo: Loyola, 2009, p. 20.
4Cf. Idem, p. 22.