“E o povo todo respondeu a uma só voz”
Na Celebração Eucarística, segundo o Rito Romano, se prevê para depois da “Primeira Leitura” um canto denominado “interlecional”. Trata-se de um Salmo entoado por um ministro específico, o salmista, e, na sua ausência, o leitor ou cantor. A assembleia, depois de ouvir os versículos por ele proferidos responde com o refrão previsto no Lecionário.
O Elenco das Leituras da Missa (OLM) prevê a celebração litúrgica da Palavra de Deus como oportunidade na qual Ela (a Palavra) se exprime de maneiras diversas, de modo que seja sempre viva e eficaz. Para o OLM o Salmo Responsorial é “uma parte integrante da Liturgia da Palavra”. Unido às demais leituras bíblico-litúrgicas, o Salmo Responsorial é considerado na sua riqueza pastoral, no conjunto das demais peças da Escritura desenvolvidas e concluídas pela homilia, profissão de fé e oração dos fiéis . Muito embora seja também expressão orante da Igreja, transmite a Palavra Divina que deve ser escutada e acolhida pelos fieis. Fazê-lo do Ambão como nos indica o OLM não “de um lugar oportuno” como sugere a Intrução Geral do Missal Romano nº 61, confere ao Salmo o status adequado de proclamação da Palavra de Deus cantada.
“Faremos tudo o que o Senhor disse”
O canto dos Salmos configura-se uma tradição que, na Igreja, remonta ao próprio Jesus. O Livro dos Salmos, desde épocas imemoriais, é considerado o Livro de Orações por excelência. Para Jesus, como membro do povo judeu, homem cuja atividade cotidiana brotava da oração, certo que os Salmos eram elemento chave da vida espiritual. Seja na Sinagoga, no Templo ou em sua casa, como também em suas pregações é possível reconhecermos o lugar que os poemas de louvor ocupavam em seu ministério.
Ao rezar, Jesus usará naturalmente essa oração do povo em que nasceu e ao qual pertence. Na sinagoga ou no Templo, ele se unirá aos judeus seus compatriotas, para rezar os Salmos. Quando subir a Jerusalém, ele se unirá ao grupo de peregrinos para cantar os salmos das subidas (Sl 119-133). Na última Ceia, recitará o que os judeus chamam de “Grande Hallel”, os Salmos 134-135, prescritos pela Lei nas grandes festas. Na cruz, para fazer subir a seu Pai a oração que o habita, Jesus exclamará com uma voz forte, nos mesmos termos que o Salmista do Salmo 21(22): ‘Eli, Eli, lema sabachtani: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?’ Enfim, depois de pronunciar o versículo 6 do Salmo 30(31) Jesus morre na cruz: “E Jesus clamou com uma voz forte: ‘Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito’. E dizendo isso expirou”.
O canto dos Salmos nas celebrações cristãs, portanto, são tidos como herança recebida do Senhor. Nossa maneira de empregá-los e deles de o vivenciarem na Liturgia está intimamente relacionada com “seu acontecimento”. Rezamos os Salmos na esteira da tradição de Jesus. Isso nos leva a compreendê-los como composições litúrgicas portadoras de um significado cristológico.
Em diversas passagens do Novo Testamento Jesus se refere ao sentido de seu ministério e de sua identidade messiânica a partir dos Salmos. O drama final de sua vida – a paixão e morte – por ele interpretado a partir da Escritura – inclui explicitamente o livro dos Salmos: “São estas as palavras que vos falei, quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.” Desse modo, os Salmos não apenas encerram a oração de Cristo, mas sobretudo revelam sua alma, sua vida, seus desejos, inclinações e sentimentos; conduzem nosso olhar para a experiência da vontade do Pai que se realiza em sua pessoa. “Quando chegou o terceiro dia, ao raiar da manhã (…) uma nuvem cobriu a montanha”.
Os Santos Padres compreendem os Salmos como proclamação da Palavra de Deus o que significa intuir que a vontade salvadora de Deus, por eles, se torna manifesta. Por isso, Pacômio, fundador da vida monástica cenobítica (comunitária) diz que “não pode haver ninguém no mosteiro que não aprenda a ler e que não conheça de cor alguma parte das Escrituras, ao menos do Novo Testamento e do Saltério” e convida para que todos sejam “assíduos aos Salmos e orações.” Em sua “Carta a Marcelino”, Atanásio afirma que
o Livro dos Salmos… como um jardim que tivesse nele uma sementeira de frutos dos outros livros, canta-os a todos e, inclusivamente deles oferece o seus próprios frutos (…) no livro dos Salmos podem-se entender e discernir os impulsos da própria alma (…) Quem lê os salmos … diz as palavras como se fossem suas, e as salmodia como se dele mesmo tivesse escrito. Para aquele que salmodia, os salmos são como espelho no qual se pode contemplar a si mesmo, ver os impulsos de sua alma (…). Certamente, toda a Escritura é mestra da virtude e da fé verdadeira, mas o livro dos Salmos oferece, além disso, o ícone para a direção das almas. Recitar o livro dos Salmos não é cultivar o prazer do sons, mas traduzir uma harmonia interior em música (…) Os cristãos deveriam fazer suas as orações bíblicas, especialmente os salmos.
Ambrósio de Milão se pergunta
Que há de mais agradável que um salmo? Na verdade, o Salmo é a bênção do povo, o louvor de Deus, o hino dos fiéis, o aplauso da assembleia, a palavra da multidão, a voz da Igreja, a exultante confissão da fé, a expressão autêntica da piedade (…). No salmo, ao mesmo tempo canta-se com gosto e aprende-se com proveito. Haverá alguma coisa que não encontres quando lês os salmos? Neles encontro a graça da revelação, o testemunho da Ressurreição, os dons da promessa.
É bem fácil perceber nas palavras desses três padres da Igreja o quanto o Livro dos Salmos sempre foi estimado e assumido como referência obrigatória para a oração cristã privada ou litúrgica. O motivo fundamental pelo qual os Salmos são muitíssimo queridos e propostos como “regra” para a oração pode ser encontrado numa outra passagem de Ambrósio quando ele afirma que os Salmos ora anunciam Cristo, ora procedem do próprio Cristo, proclamando o que em seu corpo se realizará.
Aqui se abre para nós o conceito de “Cântico Novo”, referindo-se a uma nova realização de Deus em favor de seu povo. Trata-se de uma nova vida nascida em Deus e assumida como dom recebido pelo Povo. O cântico de Moisés após a libertação do Egito é assim classificado.
Os cristãos também entoam um “Cântico Novo”: a vitória do Cordeiro sobre a morte. É um hino pelo qual se manifesta a todo o cosmo o sentido último da criação que se dá a partir da dignidade de quem fora imolado e ressuscitado. Esse canto dirigido a Cristo se exprime assim: “foste morto e compraste para Deus com o teu sangue homens de toda tribo, língua, povo e nação; fizeste deles para nosso Deus um Reino de Sacerdotes e reinarão sobre a terra.” Esse hino com ares sálmicos celebra a transformação que se opera nos fies redimidos pelo Mistério da Páscoa. Logo, o canto novo diz respeito não apenas a um louvor sonoro-musical, mas à experiência nova que se dá pela entrega de Cristo Jesus e nossa associação a ela.
“O Monte Sinai fumegava pois o Senhor desceu sobre ele”
Xabier Basurko nos lembra que o canto mais antigo da missa é o “interlecional”, isto é, o canto ligado às leituras. São cantos tradicionalmente construídos com a estrutura responsorial predominante até o século IV. A reforma litúrgica promovida a partir do Concílio Vaticano II reconduziu o Salmo Responsorial à seu lugar de dignidade, uma vez que houve um “empobrecimento” com a fixação do Salmo Gradual, no que concerne ao caráter litúrgico. O Gradual é composto de pouquíssimos versículos e sua melodia é bastante desenvolvida o que exige grande habilidade para executá-la. O Salmo Responsorial conforme a reforma litúrgica previu, recuperou a singeleza original, devolvendo-lhe seu aspecto proclamativo pelo uso de fórmulas salmódicas ligadas à cantilena. O uso abundante do refrão também propiciou a devolução do Salmo ao seu sujeito eclesial por excelência que é a assembleia.
O percurso feito até aqui no tocante ao canto cristão dos Salmos nos indica que também na Missa o salmo responsorial necessita ser assumido em sua perspectiva de anúncio do Mistério de Cristo e também de assentimento, acolhida e resposta a este dom do Pai por parte da Assembleia. O aspecto “meditativo” deve ser compreendido nesta direção. Não se trata apenas de um movimento mental, reflexivo, mas de uma ação ritual da qual se ocupa toda a comunidade de fieis em parceria com o ministro salmista. É uma ação que envolve todos os sentidos. Pensemos, como exemplo, no Salmo Responsorial previsto para a Missa de Vigília de Pentecostes. Enquanto o salmista entoa o versículo: “Todos eles, ó Senhor, de vós esperam, que a seu tempo vós lhes deis o alimento; vós lhes dais o que comer e eles recolhem, vós abris a vossa mão e eles se fartam” a assembleia contempla o altar e nele reconhece o Evangelho como aquele alimento que o Senhor fracionará e distribuirá. Imediatamente, desde o cântico do Salmo Responsorial, já se ilumina a experiência próxima da comunhão eucarística. E não só: o alimento dado por aquele que vem como sopro vivificador (o Espírito que renova a face da terra) é a própria Palavra de Deus doada ao Povo e entregue nas mãos de Moisés no alto Sinal na forma de mandamentos; e todos que vão ao altar podem fartar-se, saciar-se da água viva que de lá jorra. Água que rejuvenesce a fé e que passam a brotar daqueles que se ocupam de sua palavra. Por sua vez, o Salmo Responsorial é já no contexto da celebração litúrgica este mesmo rio que jorra do interior dos fieis. De fato, aos olhos e ouvidos, no corpo de uma assembleia atenta e formada, o Salmo Responsorial torna-se uma experiência espiritual deveras profunda.
“O som da trombeta ia aumentando cada vez mais”
Apenas uma questão para nos ocupar: que lugar tem o Salmo bíblico em nossa vida de oração? Cultivo a experiência do ofício divino? Quais seus frutos? Como o Salmo Responsorial na Miss anos ajuda a “decifrar” o Mistério de Cristo na celebração mas também (e sobretudo) no mundo?
Padre Márcio Pimentel (Liturgista)