O Evangelho de João, no final do Discurso sobre o Pão do Céu, apresenta Jesus diante dos discípulos com uma questão: “Não quereis, também vós, partir?” À pergunta Pedro responde: “Senhor, a quem iremos? Tens palavras de vida eterna.”[1] Na teologia joanina, sabe-se que “eterna” é o qualitativo da vida divina. A eternidade, na mentalidade bíblica, não pode ser reduzida a uma sucessão de “agoras”, como que um tempo infinito, perene, uma espécie de extrapolação desta vida biopsíquica. A tradição hebraica nos diz que Deus é eterno, expressão recolhida em Rm 16,26. Diz respeito, muito mais, à maneira de Deus ser e agir conforme sua fidelidade às promessas que faz, atuando como senhor do tempo[2]. Podemos concluir que, se ao dizer “vida” equivale falar da capacidade humana de agir e se mover[3] e “palavra” significa prioritariamente o ato comunicativo e autorrevelador de Deus, ter palavras de vida eterna significa afirmar Jesus como aquele que oferta a possibilidade de penetrar e tomar parte no ser de Deus a partir dele mesmo. Johan Konings nos fala de “um salto qualitativo, participação de uma vida de outra qualidade (…) É a vida no âmbito de Deus, vivida na fé, desde já. É o “definitivo de Deus” em nossa vida.”[4].
É curioso notar que, na tradição judaica, o termo ’olam (mundo, universo, para sempre ou desde o começo) é empregado em relação a Deus para falar dEle como aquele que permanece sendo ainda que atravesse mundos e universos.[5] Daí resultou a compreensão de que assim como Deus vem, também virá, com ele, um espaço e um tempo novos. Este “mundo que há de vir” tanto pode ser o mundo para além da morte, quando o tempo messiânico que se instaura já no interior da história.[6]
A Didaché, datada no final do século I, ao tratar com brevidade da Eucaristia emprega expressões muito semelhantes para enfatizar o enlace como este “mundo novo” que a celebração operava em seus participantes, mediante a comunhão na vida de Jesus: ¨Nós te agradecemos, Pai nosso, por causa da vida e do conhecimento que nos revelaste através do teu servo Jesus. A ti, glória para sempre. Da mesma forma como este pão partido havia sido semeado sobre as colinas e depois foi recolhido para se tornar um, assim também seja reunida a tua Igreja desde os confins da terra no teu Reino, porque teu é o poder e a glória, por Jesus Cristo, para sempre¨. Neste “primeiro catecismo” da Igreja, afirma-se a história como lugar e ocasião, espaço e tempo, para sermos aperfeiçoados no amor. Esse aperfeiçoamento nos é dado sobretudo pela celebração.
Voltando à Sacrosanctum Concilium, encontramos no número 10, sobre a Eucaristia, estas belíssimas palavras nascidas em contexto celebrativo: “A própria Liturgia, por seu turno, impele os fiéis que, saciados pelos “sacramentos pascais”, sejam “concordes na piedade”; “conservem em suas vidas o que receberam pela fé” (…) Da Liturgia, portanto, mas da Eucaristia principalmente, como de uma fonte se deriva a graça para nós e com a maior eficácia é obtida aquela santificação dos homens em Cristo e a glorificação de Deus, para a qual, como seu fim, todas as demais obras da Igreja apontam.” E, no número seguinte, exprime claramente que isso se consegue mediante à participação consciente, ativa e frutuosa dos fieis nos ritos que formam o complexo celebrativo.[7]
Nessa direção, Andrea Grillo escreve: “A actuosa participatio não é simplesmente uma “participação” em um ato “compreensível”, mas é a consciência de que “ritos e orações” são um ato comunitário, que precisa de uma comunidade que se reúne, que troca saudações, que escuta a palavra, que professa a fé, que reza pelos ausentes, que apresenta dons, que louva, que dá graças, abençoa, que pede perdão, que se dá a paz, que compartilha o único pão e o único cálice, que se despede com fogo no coração. Essa é a transição de um “rito a se observar” (ritus servandus) por parte apenas do padre a um “rito a se celebrar” (ritus celebrandus) por parte de toda a comunidade.”[8]
Note-se, portanto, que a participação na Liturgia proporciona, de fato, um contínuo processo iniciático, cujo arranque é dado no Batismo e depois consolidado por uma vida estruturada a partir da experiência do Mistério Pascal obtido nas celebrações da Igreja. Pode-se dizer, sem medo, que o rito formata a vida, configurando-a segundo a caridade de Cristo[9]. É assim que se abre a assembleia eucarística: “Bendito seja Deus que nos reuniu no amor de Cristo.”
Deste modo, “para viver numa relação e para saber dar graças é necessário fundar a própria existência sobre algum evento que a orienta”[10]. Este evento, para os cristãos, é a morte e ressurreição de Cristo, Mysterium Fidei, proclamado no cerne da Prece Eucaristica. Pão e Vinho sobre a Mesa-Altar testificam uma vida posta à disposição para ser absorvida pelos circunstantes; por aqueles que, de pé e ao redor do altar, como atesta o Cânon Romano e a Oração Eucarística IV, recordam em ação de graças o sacrifício pascal de Cristo, no intuito de serem transformados naquele que receberão.[11]
Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Paróquia São Sebastião e São Vicente
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[1] Jo 6,67-68.
[2] Cf. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. São Paulo: Loyola, Paulinas, Paulus e Academia Cristã, 2013, p. 487.
[3] Cf. Idem, p.1389.
[4] KONIGNS, Johan. Evangelho segundo João. Amor e fidelidade. Petrópolis: Vozes e Editora Sinodal, 2000, p. 255.
[5] Cf. GREEN, Arthur. Estas são as palavras. Um vocabulário da vida espiritual judaica. Rio de Janeiro: Solomon Editores, 2014, p.26.
[6] Cf. Idem, p.26.
[7] Cf. Sacrosanctum Concilium n. 11.
[8] GRILLO, Andrea. Os ditos e os não ditos da Sacrosanctum Concilium. Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/541328-os-ditos-e-os-nao-ditos-da-sacrosanctum-concilium-artigo-de-andrea-grillo. Acessado dia 16 de setembro de 2015.
[9] Cf, SC 10.
[10] GRILLO, Andrea. La forma rituale dela fede Cristiana, p. 129.
[11] Cf. Missal Romano, Oração depois da comunhão do 27º Domingo do Tempo Comum.