Isolamento social: Nós escolhemos o que fazer com ele
Nós, os seres humanos, não escolhemos este vírus. Ele nos escolheu! …Mas, nós podemos escolher o que fazer com ele. Onde o colocamos em nossas vidas e na sociedade atual, seja: a) por meio do seu enfrentamento (com a quarentena ou não; b) seja buscando uma vacina ou não; c) os cuidados com a saúde coletiva e individual com os ritos de higiene; d) seja revendo alguns hábitos de vida que também adoece-nos na vida com o outro e com o meio ambiente; e) seja revendo a nossa forma de lidar com o mundo social e o mundo econômico; f) seja revendo o lugar da saúde, da ciência, das artes, enfim, das escolhas fundamentais da nossa vida. Ou, então podemos ainda escolher, quando esta quarentena acabar, com o fim do isolamento social, se o mundo vai voltar da mesma forma, para os mesmos lugares e modos de vida (adoecidos), ou não. De qualquer forma, nós, os seres humanos, escolhemos o que fazer com este novo corona vírus e sua pandemia.
E onde entra a espiritualidade e a fé nesta pandemia?
O jeito do ser humano conduzir sua vida, dia-a-dia, diz da sua espiritualidade e da sua fé, em Deus e na própria vida. Assim como o combustível que não vemos move o carro e nos faz “chegar lá”, onde desejamos, assim também podemos dizer ser a espiritualidade. Nós não a vemos, mas ele é o que nos move todos os dias, fazendo-nos ficar de pé nos caminhos da vida.
Neste momento mesmo, deste afastamento social, a espiritualidade e a fé entram na forma de conduzirmos nossas vidas diante destas desta tempestade causada pela pandemia. Nossa espiritualidade está na base das nossas emoções, decisões, pensamentos e atitudes. Isto é, nossos modos de ver, sentir, pensar e agir dentro do isolamento social, com os seus inúmeros desafios, angústias, medos e ansiedades dizem do chão espiritual de cada um, de cada uma.
Nossa forma de viver este “recolhimento forçado”, olhar para rotina, para o ritmo e para o rito que dão sentido às nossas vidas no cotidiano, seja antes da pandemia, durante esta experiência e, também, dirá depois que ela passar ao termos que reconstruir nossas vidas, nossos trabalhos, a econômica e até a vida cristã. Enfim, a espiritualidade como combustível que nos faz mover dentro desta crise sanitária – que por consequência torna-se social, econômica, ecológica e até espiritual – pode ajudar a sairmos desse caminho incerto e tempestuoso do presente momento. Nesta hora, a nossa forma de nos relacionar com Deus, de crer nele é que pode nos ajudar a equilibrar nossas forças e saúde mental e espiritual perante as frentes de enfermidade que a pandemia deixa dentro de nossas casas.
A espiritualidade da prosperidade em cheque na pandemia
A meu ver, muitos discursos e igrejas na sociedade atual, antes da grande peste do COVID-19, apostavam seus discursos e práticas numa espiritualidade, toda ela centrada no discurso da prosperidade de bens e riquezas econômicas deste mundo.
O enriquecimento pessoal tornou-se nesta atualidade religiosa o grande “termômetro” das bênçãos de Deus. E se o individuo fazia tudo na igreja dele e não estava enriquecendo como a promessa espiritual, é porque Deus o havia lançado um castigo por algo que fez, ou então algum de seu ancestral. Muitas igrejas nesta espiritualidade materialista da fé se “mundanizaram” a tal ponto, isto é, reduziram os seus valores atemporais (da vida eterna) à promessas essencialmente centradas neste plano de vida terrana.
A vida pós morte, que sustenta a maior parte das religiões e igrejas, perdeu o seu sentido, com as preocupações focadas no sucesso material ou emocional deste mundo A espiritualidade e a fé, ganharam status de “produtos engarrafados” (às vezes literalmente), uma espécie de “supermercado da fé”, no qual o fiel tornou-se um cliente e o seu produto as promessas de prosperidade. Como alguns diriam nesta esfera para um fiel: “eu vim buscar a minha benção” e isso é o que importa.
Com tristeza e lamento eu consto, nesta hora incerta do mundo, com esta pandemia, que este discurso espiritual materialista, centrado na teologia da prosperidade, não consegue oferecer consolo, esperança, confiança e paz, pois estas bênçãos de Deus elas não são para ter coisas, mas para suportarmos viver a vida neste mundo com o olhar da graça de Deus que não está fora de tudo isto, mas dentro da tempestade, solidário com os crentes para que consigam enfrentar, de forma resiliente e proativa, a parte que cabe a cada pessoa e grupo humano nesta jornada de desassossego humano.
Então nesta hora incerta da humanidade, Deus está como bênção não na quantidade de dinheiro e bens materiais que o crente está ganhando – tem pessoas ricas que morreram nesta pandemia porque não tiveram acesso a um respirador mecânico, mas na capacidade dos seres humanos se doarem em prol do próximo, da vida. Como está fazendo os médicos, os técnicos de enfermagem; os cientistas, os caminhoneiros, as farmácias, os supermercados. Enfim, Deus está em cada pessoa que está lutando para ajudar a diminuir a dor do próximo, a fome, as doenças da alma, principalmente dos mais frágeis e dos mais pobres da sociedade. Deus está na vida daquele que tem uma espiritualidade que ajuda o outro a reerguer dizendo “coragem, não tenhas medo, eu estou contigo!”.
Em tempos desafiantes podemos crescer em espiritualidade
É nesta hora de escuridão do mundo, neste tempo da via-dolorosa da humanidade exposta em sua fragilidade, como Cristo ferido de morte que, como cristãos, somos questionados: onde estão os líderes religiosos e estas Igrejas que faziam curar toda e qualquer forma de doença, atribuída à maldição, castigo ou possessão diabólica em troca pagamentos materiais? Onde está este deus que reduziu a fé e a espiritualidade a uma espécie de “supermercado da fé” da prosperidade e do sucesso pessoal temporal? Onde estão e por que eles não curam os crentes e os não crentes desta praga? Por quê? Por que eles não podem!
Aos que desenvolveram uma espiritualidade e uma crença religiosa (fé) na prosperidade, nos ganhos deste mundo, diante desta crise mundial se veem em crise de sentido, pois a espiritualidade e a fé, vistas como uma via de prosperidade, não podem dar segurança pela via dos bens que cada um tem.
Por mais que o dinheiro ajude as pessoas a terem saúde, qualidade de vida materialmente falando ele não é deus. Ele não tem poder de dar sentido derradeiro ao ser humano ou ainda de salvá-lo da morte pela via do dinheiro.
Neste tempo de incertezas, de enfermidades com a pandemia, muitos devem estar se sentindo abandonados, esquecidos e, o pior, castigado por esta imagem criada de um “deus mercantilista”.
Quando a espiritualidade e a fé sustentam nossas vidas?
Quando aqueles que têm uma espiritualidade e uma fé, seja de que religião forem, centrada na graça de Deus e não na prosperidade sentirão mais apoio e fortaleza. Quando colocamos os valores espirituais para além do sucesso profissional e material, conseguimos experimentar uma vida espiritual mais fundamenta no consolo, na fortaleza, na esperança e na paz. Na certeza da presença de um Deus que se revela frágil para nos acompanhar em nossas fragilidades. Ferido para mostrar-se solidário conosco.
Um Deus que se fez gente. Verbo que se fez homem, Jesus de Nazaré. Aquele mesmo que estamos celebrando nestes dias de Páscoa, que nos revela que ele não está acima dos nossos calvários, nem longe das nossas cruzes e, menos ainda, insensível aos nossos espinhos, pois “Ele está no meio de nós”, solidário e compassivo.
Como nos diz a Liturgia de Domingo de Ramos o Senhor está “nos dando uma palavra de conforto para a pessoa abatida… pois o Senhor é nosso Auxiliador” (Isaías 50, 4.7). Ou ainda seu filho, Jesus Cristo, na quinta-feira Santa é: O Mestre e Senhor que nos ensinou a “religião do lava-pés”, do mandamento novo, o do amor (Jo 13, 1-15) e que nos pede que façamos o mesmo, “lavando os pés uns dos outros”.
Enfim, neste tempo de humildade e simplicidade de vida diante da existência, neste mundo em xeque, com a pandemia e o isolamento social, é que é hora de aprendermos de Jesus na Quinta-feira Santa a espiritualidade do lava-pés, que é a do serviço à vida, sem julgamento, sem cobranças, sem barganha e sem promessas materiais, mas pura graça de amar sem medida.
Se é para ter alguma medida, que seja a do “amor exagerado”, como diz Padre Eymard, aquele refletido na Teologia da bacia, na Ceia do Senhor e na Teologia da Cruz e do Túmulo vazio e que nos convida sempre a avançarmos para “aguas mais profundas”.
Que nesta hora de dor, incertezas, medos e obscuridades, desassossegos e descrenças, as religiões, igrejas cristãs, se prestem à ajudar a salvar vidas e a conservá-las diante do inimigo invisível que é o COVID-19. Ou ainda a alimentar uma espiritualidade que fortaleça a fé de seus membros para que possam suportar os tempos difíceis em que estamos vivendo. Amém, assim seja!