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Ambiente onde brota a compaixão de nosso Deus

Um último aspecto que gostaríamos de tratar sobre a especificidade do espaço sagrado destinado ao culto cristão diz respeito à experiência da compaixão. O mesmo hino ao qual nos referimos antes, posto nos lábios de Zacarias por ocasião do nascimento de seu filho, Profeta do Altíssimo, ele fala do “misericordioso coração de nosso Deus”, razão pela qual o Messias visita Israel. Esse versículo fala muito sobre a vocação e missão de Jesus. Sua atividade consta de apresentar aos seus o coração misericordioso do Pai. Na verdade, seu trabalho, sua liturgia, é de edificá-lo no peito do ser humano.

 

O espaço
sagrado deve sobretudo comunicar este Mistério da Caridade:
Deus se compadece de
nós e vem
ao nosso encontro e nos eleva
com Ele

A versão grega desse versículo fala literalmente das entranhas misericordiosas de Deus. Na tradição bíblica, as entranhas configuram-se numa imagem para falar dos sentimentos. Quando Paulo, por exemplo, na carta aos Filipenses (2,1) exorta os cristãos a terem “os mesmos sentimentos de Cristo Jesus” utiliza a mesma palavra grega. Vísceras para um israelita corresponde aproximadamente ao que tomamos pelo vocábulo “coração” em nossa cultura ocidental.  Entretanto, a riqueza desse termo grego repousa na sua relação com o hebraico rechem, que significa regaço, seio materno, enfim, onde a vida é concebida e doada. O Filho de Deus é concebido e doado ao mundo e sua origem é o regaço de Deus. O Pai nos oferece o fruto de suas entranhas, qual uma Mãe movida de compaixão pela sua criação que, desordenada, confusa e corrupta, necessita ser restaurada na sua integridade e beleza.

Jesus constrói sua trajetória em meio ao povo de Israel para resgatá-lo da corrupção e da morte. O faz na simplicidade de uma vida compartilhada na intimidade da relação mestre-discípulo. Sabemos que esta relação é bem mais profunda do que aquela que se estabelece entre um professor e um aluno. Trata-se de um pacto comunhonal pelo qual o discípulo opta por um modelo de humanidade, decide aprendê-lo acompanhando-o pela vida afora. Ed Reneè Kivtiz em seu inspirado Talmidim, o passo a passo de Jesus comenta um ditado antigo dos rabinos: “cubram-se com a poeira dos pés de seu rabino.”1 Segundo Kivitz “o que os rabinos estavam querendo dizer é o seguinte: ‘observe atentamente, ouça com atenção tudo o que seu mestre diz, não perca nenhum detalhe da vida de seu mestre, porque ele, o seu rabino, é o modelo do homem que você está se tornando.’”2

 

Assim aconteceu com Jesus na Palestina do século I. Seus discípulos (e discípulas, certamente) o acompanhavam “para cima e para baixo”, comiam com ele nas casas em que visitava, testemunhavam seus toques terapêuticos e exorcísticos, participavam de suas conversas e ensino, dormiam nos mesmos lugares, passavam as mesmas necessidades, sofriam com ele, rezavam com ele, acolhiam os enfermos, abraçavam as crianças, se faziam família para as viúvas e órfãos… enfim, aprenderam a ser como ele (e não sem dificuldades: “Felipe, há tanto estás comigo e ainda não compreendeis!”). Foi assim que Jesus deixou entornar a intimidade do Pai com amor de Mãe, nas palavras do Papa Francisco. Transbordou esse amor-caridade na intimidade da convivência, da comensalidade, da amizade (“já não os chamo de servos, mas de amigos!”).

 

Não há um
só prego,
aldraba ou
parede que não narre o Cristo
e a ele nos conduza quando se trata de
espaço sagrado

Depois da morte e ressurreição de Jesus, primeiro nas sinagogas e depois de serem delas expulsos, nas casas, os discípulos e discípulas foram narrando estes acontecimentos que tinham compartilhado com o Mestre. E foram interpretando sua vida à luz das Escrituras, partindo o pão como Ele ordenou e bebendo do cálice que ele por primeiro abençoou. Cultivaram sua memória e a transmitiram. Outros e mais outros cristãos e cristãs foram acolhendo este testemunho e, segundo a criatividade suscitada pelo Espírito foram forjando os ritos na fidelidade à experiência de Jesus transmitida pelos apóstolos e suas comunidades originais. Agiam assim, para que essa experiência do novo ser humano não se perdesse, mas fosse se desenvolvendo, agregando e congregando mais pessoas de modo que por elas o mundo fosse se tornando mais de Deus, segundo a percepção e caminho trilhados por Jesus. Esta era a Liturgia das casas que precisa continuar hoje na Casa da Igreja, nome mais adequado que há para os templos cristãos. Esta compaixão misericordiosa das origens precisa ser comunicada até os confins da terra, conforme solicitara o próprio Jesus.

Santo Agostinho dizia em um de seus sermões que o coração do ser humano é edificado com a Palavra de Deus. O espaço sagrado proporciona esta educação segundo o coração de Deus, mediante a experiência sacramental da Palavra Divina. O mesmo amor-caridade de Jesus entoado até hoje no canto de apresentação dos dons da Quinta-feira Santa precisa firmar-se no coração de homem e da mulher de hoje. O espaço sagrado deve servir a este fim e sobretudo deve, por sua concepção, materiais, orientação, iluminação, ornamentação e uso comunicar este Mistério da Caridade: Deus se compadece de nós e vem ao nosso encontro e nos eleva com Ele. O espaço em si mesmo torna-se guia para o Mistério: dizemos, lugar mistagógico. Certa vez Claudio Pastro em uma de suas assessorias lembrava que não há um só prego, aldraba ou parede que não narre o Cristo e a ele nos conduza quando se trata de espaço sagrado.

Conclusão

Conforme pudemos perceber ao percorrer algumas poucas páginas deste breve ensaio sobre o Espaço Sagrado, é a própria Liturgia quem dá forma ao lugar de culto, a Casa da Igreja. Liturgia que, em sentido amplo é o próprio serviço do Filho do Homem e Filho de Deus, Jesus de Nazaré. Ministério que ele realizou e realiza na companhia de sua Igreja. Liturgia em sentido estrito, compósita de Ritos que são o permanente conceber e encarnar-se do Verbo de Deus. Uma comunidade que se prepara para reformar seu espaço sagrado, bem como outras que almejam construir novos não podem descuidar deste Mistério, cujo resplendor o próprio edifício eclesial deve manifestar, por suas pedras vivas e por seus ícones, paredes, altar, vasos, ornamentos.

Que essas reflexões nos ajudem a alimentar a fé, numa compreensão mais teológica e pastoral a respeito da Liturgia que celebramos, a fim de que – conforme nos diz São Paulo na carta aos Filipenses, tenhamos em nós as mesmas entranhas de Cristo e por este evento sejamos – hoje – homens e mulheres salvos, porque renovados por sua morte e ressurreição. Que esta Páscoa faça ruir em nós o velho Adão para que Deus, por seu Cristo, habitando-nos na unidade de seu Espírito, nos reerga para a vida nova. Amém.

1KIVITZ, Ed René. Talmidim. O passo a passo de Jesus. São Paulo: Mundo Cristão, 2012, p. 8.
2KIVITZ, Ed René. Idem.

 

 



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