Cantar adoça o sofrer.
Quem canta refresca a alma
Quem canta zomba da morte
Cantar ajuda a viver.
Quem canta seu mal espanta
Eu canto pra não morrer.
Érico Veríssimo
A importância do canto na Igreja
O secretário pessoal do Papa João XXIII, Mons. Loris Capovilla, sintetiza brilhantemente o Concílio Vaticano II em quatro aspectos fundamentais, que coincidem com seus quatro pilares:
Hoje sabemos, melhor que ontem, quem somos e para onde vamos (Lumen Gentium), que idioma devemos falar e que mensagem devemos difundir (Dei Verbum), como e com que intensidade rezar (Sacrosanctum Concilium); que atitude assumir diante dos problemas e dramas da humanidade contemporânea (Gaudium et Spes). São os quatro pilares que sustentam o edifício da renovada teologia pastoral e alentam a escutar a voz de Deus, a dirigir-se a Deus como filhos, e obrigam a dialogar com todos os compromissos da família humana. [1]
Estes quatro frutos do Concílio que se exprimem e explicam nas quatro Constituições Conciliares não podem ser considerados em separado, embora possam ser analisados sob óticas diversas. Em nosso caso, tomando-os pelo prisma da Liturgia, podemos inferir que nossa identidade e destino como discípulos e discípulas do Senhor se radicam na Palavra de Deus, cujos apelos nos impulsionam a trabalhar no mundo. E onde se daria a experiência mais eficaz do diálogo com o Senhor que nos funda como povo congregado e consagrado senão nas celebrações da Igreja? Deste modo, a Sagrada Liturgia goza de um lugar especial dentre as diversas atividades da comunidade cristã sem, contudo, esgotá-las [2].
O Concilio desejou e solicitou uma reforma geral da Sagrada Liturgia, alicerçada na tradição mais antiga da Igreja, quando ainda não havia acontecido o primeiro grande cisma entre o Oriente e o Ocidente no ano de 1054. Do tesouro comum das Igrejas, recuperou elementos importantes para a oração da Igreja que se haviam perdido ou, no mínimo, diminuído o fulgor com o passar dos séculos. Dentre estes, certamente, se pode falar do canto litúrgico, tido pelos padres conciliares como “tesouro de inestimável valor”, sobretudo porque integra a Liturgia, não podendo ser considerado mero ornamento.[3]. Justino, já no século II ao narrar uma Eucaristia após a celebração do Batismo fala de um hino de louvor e glória apresentado ao Pai, em nome do Filho e do Espírito Santo [4].
A Instrução Inter Oecumenici, que visa a correta aplicação da Constituição sobre a Sagrada Liturgia reconhece no serviço dos cantores um verdadeiro ofício litúrgico [5]. Seu papel se destina, sobretudo, a guiar e sustentar os fieis no canto[6]. Este aspecto da vida Igreja, a ministerialidade, fora acenado nas próprias resoluções do Concílio como se pode ler nos números 28 e 29 da SC. A Instrução Musicam Sacram, de 1967, salienta que os cantores ocupam na ação litúrgica um lugar especial, relativa à sua função ministerial.
Neste sentido, é bom lembrar o caráter simbólico do canto litúrgico [7]. É expressão do ser humano na sua complexidade e também das realidades divinas, mais especificamente, sinal de Cristo Jesus morto e ressuscitado. Na verdade, a música litúrgica é realização da oração de Cristo reverberando em seu Corpo que é a Igreja. A música ritual não é mais vista a partir de si mesma, mas em relação com o Mistério de Cristo.[8]. Sua beleza deriva do próprio Senhor, no serviço que presta a sua Palavra que se cumpre mediante os ritos da Igreja, tendo o ser humano em atitude orante e por isso dialogal perante seu Senhor como lugar de sua realização, no tempo e no espaço definidos.[9].
Note-se, portanto, que o caráter litúrgico de uma peça musical – em particular a música vocal, o canto – se estabelece, preponderantemente, por seu caráter ministerial, pelo serviço que a melodia presta à Palavra de Deus.[10].
A Santidade da Música Litúrgica: o canto dos Salmos
A Instrução Musicam Sacram nos diz que o canto litúrgico deve “exprimir o Mistério de Cristo”.[11] Somente um canto que revele e realize Cristo em nós pode ser considerado apto à Liturgia, cujo objetivo é manifestá-lo como também revelar a identidade da própria Igreja,[12} um Mistério que nela (a Liturgia) é “anunciado, saboreado e vivido.[13]” Somente um canto deste tipo será capaz de “nos conduzir até à medida da idade da plenitude de Cristo”.[14]
Por esta razão, desde sempre a Igreja adotou como repertório próprio o Saltério. No começo, tendo-o como inspiração fundamental para seus hinos e depois utilizando-os na própria celebração.[15] Em sua “Breve história de la música sacra” Luigi Garbini insiste no fato de que os Salmos se tornam normativos para a compreensão da vida cristã.[16] Sobre isso, dão testemunho os Santos Padres, com destaque para Agostinho que atrelava ao canto do salmos a própria existência cristã: “Quem canta e trabalha salmodia com a cítara e a lira”[17]. Houve uma época, inclusive, em se proibiu qualquer outro canto na Liturgia cristã que não fosse a própria Sagrada Escritura[18].
Tudo isso se diz por que “A Igreja exprime a santidade que lhe provém de Cristo quando reunida num só corpo pelo Espírito Santo, que santifica e dá vida (…).”[19] Podemos falar aqui de um salto de qualidade do sacro ao santo[20]. A música litúrgica não é uma composição com conteúdo meramente religioso, mas claramente destinada ao culto. “Na música para a liturgia a beleza sonora não é o efeito de uma arte humana que se autocompraz e que, por isso, se autocelebra, mas é o eco da glória divina que se revela”[21]; faz despontar na assembleia litúrgica o “Sol do Oriente”[22]
Nesses cantos (os salmos), encontra-se elaborado com um doce prazer tudo o que a lei, os profetas e até os próprios evangelhos ordenam. Deus é dado a conhecer, os ídolos são postos ao ridículo; a fé é ricamente afirmada, a infidelidade é rejeitada; recomenda-se a justiça, proíbe-se a iniquidade; a misericórdia é louvada, a crueldade é abominada; exige-se a verdade, condena-se a mentira; a fraude é acusada, a inocência é repleta de elogios; a soberba é humilhada, a humildade é exaltada; prega-se a paciência, promove-se a paz; suplica-se a proteção contra os inimigos, promete-se o castigo deles; a esperança é alimentada, e, o que é muito mais importante do que tudo isso, cantam-se os mistérios de Cristo. Pois, de fato, narra-se sua geração, o abandono do povo ímpio e a herança dos gentios: cantam-se os milagres de Cristo, mostra-se sua paixão venerável, sua ressurreição gloriosa, assim como seu sentar-se à direita do Pai. Além disso, manifesta-se a vinda do Senhor pelo fogo e o terrível juízo dos vivos e dos mortos. O que mais? Revela-se, também o envio do Espírito criador e a renovação da terra: depois de tudo isso, virá a glória do Senhor, o reino sempiterno dos justos e o perene suplício dos ímpios [23].
A escolha pelo Saltério como Hinário do povo de Deus nos primeiros séculos do cristianismo se deve a muitos fatores, dentre eles a herança judaica. Nesta, o livro dos Salmos é considerado o livro de orações e preces por excelência[24]. Por meio deles, a assembleia litúrgica fala ao seu Senhor, mas também o escuta na própria resposta que lhe eleva. Assim, já se entende desde o início a primazia do texto sobre a melodia, no que se refere ao canto litúrgico.
Sendo o canto litúrgico expressão de fé, é de máxima importância o texto. Adamais de ser um texto literalmente correto, deve ser expressão de fé da Igreja. Por isso não nos deve estranhar a prescrição de que os textos devem ser aprovados pela Conferência Episcopal (IGMR 26 e 56).
Na prática, a tradição litúrgica da Igreja latina optou por textos bíblicos em quase sua maioria. Também há alguns textos de cantos que entraram na liturgia católica sem ser bíblicos, e que por sua grande tradição pedem ser conservados. Por exemplo: “Gloria in excelsis Deo”; “Ubi caritas amor”, “Victma paschali laudes”, “Veni Sancte Spiritus”…[25].
Por essa razão, Antonio Alcade insiste, na linha de Nicetas de Remesiana,
Os cantos na celebração litúrgica deve ser confessores da fé (…).
Teremos que superar o nível dos cantos informantes da fé. Estes são cantos que – como o jornalista-repórter – nos dizem coisas em seus textos referentes à fé, mas não nos implicam nela. Teremos de passar da didática à expressão da fé, da informação à mistagogia da fé, de conhecer a fé a abraça-la com prazer, quer dizer, que sejam cantos que, por seu texto, apoiado por uma boa melodia, nos permitam dar o passo do implícito ao explícito, de uma fé sociológica a uma fé vivencial (…)[26].
Pela participação no canto da fé, os fieis adentram no Mistério de Cristo, experimentam-no e exprimem-no. Jugmann em sua famosa obra Missarum Solemnia, no qual desnuda as origens e desenvolvimento da missa com o passar dos séculos nos diz que
Dentro da própria ação litúrgica, a participação do povo expressava-se principalmente pelo fato de que ele não escutava somente em silêncio as orações do sacerdote, mas que as confirmava também através de sua aclamação. (…)
Desde os tempos antigos fazia parte dos direitos do povo, também, certo número de textos hínicos que aumentava aos poucos. O mais venerável entre eles é o Sanctus com o Benedictus, que foi também o canto que por mais tempo continuou sendo do povo. Igualmente antigos eram os versículos responsoriais que se cantavam na forma de refrões depois de cada verso do salmo entre as leituras [27].
Deve-se observar as considerações de Paulo VI na carta Laudis Canticum, sobre a importância da oração dos Salmos na Igreja:
Acima de tudo, a oração dos salmos, que segue de perto e afirma a ação de Deus na história da salvação, deve ser tomado com amor renovado para o povo de Deus, o que será feito mais facilmente se for promovido diligentemente entre o clero um entendimento mais profundo dos Salmos, segundo o sentido com o qual são cantados na liturgia, e se deles tomam parte todos os fiéis por meio de uma catequese adequada.
Felice Rinaldi nos fala a respeito das funções rituais no uso litúrgico dos Salmos:
Salmos como proclamação pública da Palavra de Deus;
Salmos como eco e comentário da Palavra de Deus;
Salmos como manducação pessoal da Palavra de Deus;
Salmos como oração comum;
Salmos como definição de um mistério litúrgico que vem celebrado;
Salmos como comentário/acompanhamento de um rito;
Salmo como festa do Povo de Deus[28].
O Canto Litúrgico Cristão
A peculiaridade do canto litúrgico em relação às outras formas musicais cristãs reside na sua sacramentalidade. O canto da assembléia em nossas celebrações, nas suas mais variadas formas, nos situa dentro do diálogo da Aliança com o Senhor, como filhos no Filho. Realiza em nós e entre nós a intimidade e a comunhão com o Pai, através da fraternidade dos irmãos e irmãs reunidos em oração e em união vocal. É o canto do Filho ao Pai, que brota do amor (Espírito) que os enlaça. Ao abrirmos os lábios em louvor, adentramos nesta relação que se dá no interior da Trindade.
Neste sentido, não é um canto que se pauta em nossa subjetividade, mas na objetiva fé eclesial. Ao conferir “carne” à Palavra, colabora para que os irmãos e irmãs que foram mergulhados na morte e ressurreição de Jesus entoem na vida cotidiana o canto novo que não é outra realidade senão a existência configurada à Páscoa de Cristo Jesus. Por isso, para ser litúrgico, além de estar intrinsecamente ligado aos ritos, o seu texto deve ter origem bíblica e eucológica, isto é, ser inspirado nas Escrituras e na própria oração da Igreja.
O canto litúrgico é epifânico porque manifesta e realiza em nós o mistério pascal de Jesus a partir de nosso corpo, a fim de que se espalhe na terra o Reinado de Deus. É construção de Deus e não nossa. É Liturgia (serviço) Divino no qual tomamos parte e através desta nossa colaboração, a história e o mundo vão sendo recriados à sombra do Espírito. Particularmente, o Ciclo do Natal nos leva a esta certeza: Deus fez-se corpo no Menino de Belém e manifestou-se a nós. Sua grandeza e seu poder nos foram regaladas na pequenez e fragilidade de um recém-nascido: “encontrareis um recém-nascido envolto em faixas” (Lc 2,12b). O canto litúrgico é isto: a Palavra divina manifestada na carne, a voz de Deus envolta nas “faixas” de nossos timbres.
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1 Publicado em http://www.ihu.unisinos.br/noticias/40251-secretario-de-joao-xxiii-relata-a-historia-do-anuncio-do-concilio-vaticano-ii. Consulta dia 15/08/2012.
2 SC 9.
3 Cf. SC 112.
4 Cf. Justino in. Antologia Litúrgica, n. 395.
5 Inter Oecumenici n. 2296.
6 Carta do Consilium sobre alguns problemas da reforma litúrgica, n.4.
7 Cf. STEFANI, G. O Canto. In. GELINEAU, J. (org.) Em vossas assembleias. Teologia e pastoral da Missa. São Paulo: Edições Paulinas, 1973, p.223. Ver também WEAKLAND, Rembert. El canto y los símbolos en la liturgia. In. VV.AA. La voz del Canto Liturgico. Cuaderno Phase. Barcelona: Centre de Pastoral Liturgica, 2003, pp. 48ss.
8 Cf. LIBERTO, Giuseppe. Cantare il Mistero. Musica santa per la liturgia. Firenze, Ediziono Feeria, 2004, p.51.
9 Giuseppe Liberto em seu livro “Cantare il Mistero” afirma que a ministerialidade da música litúrgica se estabelece no serviço que presta em relação à Palavra de Deus, aos ritos, aos ministros da celebração litúrgica – e neste ponto em relação com a assembleia litúrgica – e, finalmente, na articulação com a celebração do ano litúrgico.
10 Cf. BASURKO, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Paulus, 2005, pp. 29-49.
11 Intrução Liturgicae Instaurationes, n. 3c, em que se fala da importância dos textos litúrgicos compostos pela Igreja.
12 SC 2.
13 Carta Apostólica Vicesimus Quintus Annus, n. 9.
14 Idem.
15 Cf. GELINEAU, J. O Canto dos Salmos. In. GELINEAU, J. Em vossas assembleias. São Paulo: Edições Paulinas, 1973, p.235.
16 Cf. GARBINI, Luigi. Breve historia de la música. Madrid: Alianza Editorial, 2009, p. 44ss.
17 Comentário ao Salmo 97.
18 Cf. I Concílio de Braga, ano 561, n. 12. In. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, n. 5157.
19 Carta Apostólica Vicesimus Quintus Anus,n.9.
20 LIBERTO, GIUSEPPE. Cantare il MIstero, p. 65.
21 LIBERTO, GIUSEPPE. Cantare il Mistero, p. 67.
22 Cf. Lc 1,78.
23 Nicetas de Remesiana. In. Antologia Litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003, n. 2689.
24 Cf. Tehilim et Ratzon. Buenos Aires: Editorial Perspectivas, 2008, p. xiii.
25 BABURÉS, Joan. El canto litúrgico. Perspectivas atuales. In. VV.AA. La voz del Canto Liturgico. Cuaderno Phase. Barcelona: Centre de Pastoral Liturgica, 2003, p. 27.
26 ALCADE, Antonio. La Salud del Canto Litúrgico. In. VV.AA. La voz del Canto Liturgico. Cuaderno Phase. Barcelona: Centre de Pastoral Liturgica, 2003, p.42.
27 JUGMANN, J. A. Missarum Solemnia. São Paulo: Paulus, 2010, p. 243-244.
28 RAINOLDI, Felice. Il miele dalla pietra. Guida litúrgico-pastorale al canto dei Salmi. Roma: CLV Edizioni Liturgiche Roma, 2002, p. 69.