O movimento litúrgico, culminando com o Concílio Vaticano II, retomou a antiga Tradição que via na Liturgia a fonte do genuíno espírito cristão da qual não se deveria participar como meros espectadores
Os especialistas em matéria litúrgica são praticamente unânimes ao afirmar que o Missal plenário obtido a partir da reforma de Trento tem como escopo o Ordo Missae da Cúria Romana.1 Compreende-se, com isso, que a partir de Trento, a normatividade estabelecida para a Celebração Eucarística estendida a toda a Igreja do Ocidente será aquela da missa privada. Não há assembleia prevista à participação. Quer dizer, neste esquema, não transparece qualquer preocupação com a presença e envolvimento da comunidade de fé nos ritos. O Ordo Missae é pensado e esquematizado, de certo modo, para atender à devoção de quem preside. Não se tem em vista da participação eclesial no Mistério de Cristo. Deste modo, faz sentido que tudo quanto diga respeito à comunidade dos fiéis tenha desaparecido: salmo responsorial, homilia, oração dos fiéis, comunhão. Tudo girava em torno do padre denominado no mais das vezes como “celebrante” e dos ministros (quando havia) que lhe serviam na realização dos ritos – isto é, o clero.
É bem verdade que essa maneira de compreender a celebração eucarística não nasceu com Trento, mas o Missal piano canonizou, divulgou e se impôs universalmente. Os missais com menos de 200 anos de uso deveriam ceder lugar ao Missal piano. Incrementos e adaptações passariam a ser praticamente proibidos, embora – como vimos anteriormente – fossem providenciadas ora pela autoridade competente, ora pela coragem de editores e igrejas locais. Se por um lado, o Missal de Pio V significou certa unidade no Rito Romano, pondo um freio nos excessos acumulados com o passar dos séculos, por outro, colaborou para tornar a Missa algo desconectado da vida dos fiéis, que tinha cada vez mais uma participação mitigada no Mistério da Fé celebrado. A partir daí, sucederia o contexto sempre mais propenso às devoções que viriam a se tornar fonte da espiritualidade dos cristãos. Isso, até que o movimento litúrgico, culminando com o Concílio Vaticano II, retomasse a antiga Tradição que via na Liturgia a fonte do genuíno espírito cristão2 e da qual não se deveria participar como meros espectadores.3
A insistência no latim, já desconhecido não apenas pelos fiéis, mas também pelo clero, condicionava ainda mais a participação efetiva daqueles que insistiam em tomar parte na Missa. Para formulários já incompreensíveis, multiplicavam-se gestos e movimentos já carentes até mesmo de funcionalidade, tornando os ritos um espetáculo complexo a ser apreciado por espectadores mudos. Tudo é posto em cena diante do altar-mor encostado à parede, com seu retábulo geralmente desproporcional, que não mais cooperava para que se compreendesse que a Eucaristia não era apenas, e muito menos, Sacrifício- segundo os cânones do Antigo Testamento-, mas também Banquete. A Missa transparecia aos que a assistiam ser uma coreografia solitária daquele que preside, com participação comedida dos que o auxiliavam, sendo o Missal plenário posto ora para a direita, de onde se lia a Epístola, ora para a esquerda, de onde se lia o Evangelho. Não havia mais a necessidade do Ambão. Tudo devia ser meticulosamente realizado conforme as orientações contidas no Ritus Servandus. Uma coleção de normativas detalhadas sobre posturas, gestos e tons com os quais aquele que presidia deveria se preocupar.
Nesse horizonte, cabia de fato a linguagem de “administrar” o sacramento aos fiéis, verbo que ainda hoje encontramos em alguns documentos magisteriais. Os fiéis são destinatários ocasionais e a celebração está vinculada à piedade particular do padre que “diz” a “sua” Missa. Se para nós, hoje, comungar durante a missa é algo normal e habitual, isso, antes do Concílio Vaticano II com sua reforma litúrgica, era exceção. Inclusive, talvez possamos debitar a esse costume de não comungar na celebração eucarística, a origem de se apresentar aos comungantes – ainda hoje – a reserva eucarística guardada no tabernáculo, mesmo que isso seja claramente reprovado pelo Missal atual (IGMR n. 85).
O Ritus Servandus, que obrigatoriamente deveria ser conhecido e executado tal e qual, regia em minúncias a prática do “celebrante”. Não se tratava de teologia e descrição ministerial dos ritos como se apresenta na Instrução Geral do Missal Romano, segundo conhecemos da reforma litúrgica. É uma espécie de “ABC” do gestual. A Ars Celebrandi – se existisse – constaria de replicar à perfeição o que aí se indica. Essa é uma das portas para o que contemporaneamente chamamos de “rubricismo”. Como dito antes, o Ritus Servandus praticamente não se refere à comunidade dos fiéis, a não ser quando se tratava da comunhão onde se lia: “Se na missa houver comungantes…” e passa a descrever como devia prosseguir. Revelava-se aqui uma perspectiva teológica da Eucaristia que a vinculava estritamente ao presbítero ou bispo. Não se notava qualquer acento pastoral. Note-se também que nele, ainda encontramos a indicação do que deveria ser feito enquanto houvesse outra Missa sendo “dita” no mesmo espaço, mas noutro altar. Cada padre com sua missa, portanto. A assembleia, se houvesse, era detalhe. Quem presidia deveria estar a maior parte do tempo voltado para o altar e para a cruz, a fim de não se distrair com aquilo que acontecia ao seu redor. Voltava-se para o povo somente em algumas poucas circunstâncias, como no convite à oração (Oremos).
Deve-se concordar com Paulo VI quando afirma que a Missa assim rezada e vivida, nutriu a Igreja desde a promulgação do Missal piano com a Carta Quo primum tempore em 1570. É errôneo pensar que a Missa conforme esse livro litúrgico regeu a espiritualidade dos fiéis desde sempre. Embora em Trento e seu Missal encontremos ecos da antiga tradição litúrgica romana, muitos elementos importantes haviam desaparecido. As observações que ora fazemos partem da experiência de quem não vive mais no século XVI, em clima de contrarreforma. É resultado de uma avaliação minunciosa oferecida pelo Movimento Litúrgico – sobretudo – no decorrer de quase um século de estudos sérios, realizados por pessoas igualmente sérias. Especialmente, trata-se de uma perspectiva crítica que se oferece a partir da reflexão teológica e pastoral do Concílio Vaticano II, cujo Missal Romano que daí resulta passa a dar contornos concretos e estampa no corpo da Igreja. Falar em “mútuo enriquecimento” como os defensores da chamada “forma extraordinária” é contrasenso. Nas palavras do próprio Paulo VI, aceitar que se use este Missal é “o símbolo da condenação do Concílio. Eu não vou aceitar, em hipótese alguma, a condenação do Concílio através de um símbolo. Se essa exceção para a liturgia do Vaticano II fosse concedida, todo o Concílio ficaria abalado. E, como consequência, a autoridade apostólica do Concílio ficaria abalada.”
Padre Márcio Pimentel é especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando
em Teologia na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Paróquia São Sebastião e São Vicente