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Ainda que caminhe por um vale escuro

 

Um dia, Francisco de Assis exclamou: «Caro imperador, Orlando e Olivero, todos os grandes guerreiros que foram valentes nos combates, perseguindo os infiéis com muito suor e fadiga até à morte, conseguiram sobre eles uma glória e memorável vitória, e por último estes santos mártires caíram em batalha pela fé de Cristo. Mas há muitos que, somente narrando suas gestas, querem receber honra e glória dos homens» (1).

Em uma de suas Admonições, o santo explicou o que havia querido dizer com aquelas palavras: «É uma vergonha para nós, servos do Senhor, o fato de que os santos atuaram com os fatos e nós, relatando e pregando as coisas que eles fizeram, queremos receber honra e glória» (2). Estas palavras me vêm à memória como um austero sinal no momento em que me disponho a oferecer a segunda meditação sobre a santidade de Madre Teresa de Calcutá.

Na escuridão da noite

O que ocorreu depois que Madre Teresa disse seu «sim» à inspiração divina que a chamava a deixar tudo para colocar-se a serviço dos mais pobres entre os pobres? O mundo conheceu bem o que sucedeu em torno dela – a chegada das primeiras companheiras, a aprovação eclesiástica, o vertiginoso desenvolvimento de suas atividades caritativas -, mas até sua morte, ninguém soube o sucedido dentro dela.

Revelam isso os diários pessoais e as cartas a seu diretor espiritual, divulgadas por ocasião de sua beatificação: «Com o início de sua nova vida a serviço dos pobres, uma opressiva escuridão veio sobre ela» (3). Bastam alguns breves fragmentos para dar uma idéia da densidade das trevas em que entrou. “Há tanta contradição em minha alma, um profundo anseio de Deus, tão profundo que faz dano, um sofrimento contínuo -e com isso o sentimento de não ser querida por Deus, rejeitada, vazia, sem fé, sem amor, sem entusiasmo… O céu não significa nada para mim, me parece um lugar vazio” (4).

Não foi difícil reconhecer imediatamente nesta experiência de Madre Teresa um caso clássico do que os estudiosos da mística, detrás de São João da Cruz, chamam a noite escura do espírito. Taulero faz uma descrição impressionante desta etapa da vida espiritual: “Então somos abandonados de tal forma que já não temos conhecimento de Deus e caímos em tal angústia que não sabemos se estivemos no caminho justo, nem sabemos já se Deus existe ou não, ou se nós mesmos estamos vivos ou mortos. De sorte que sobre nós cai uma dor tão estranha que nos parece que todo o mundo em sua extensão nos oprime. Já não temos nenhuma experiência nem conhecimento de Deus, e inclusive tudo mais nos parece repugnante, de forma que nos parece estarmos prisioneiros entre dois muros”(5).

Tudo permite pensar que esta escuridão acompanhou Madre Teresa até a morte (6), com um breve parêntese em 1958, durante o qual pôde escrever alegre: «Hoje minha alma está cheia de amor, de alegria indizível e de uma ininterrupta união de amor» (7). Se a partir de certo momento já não fala quase disso, não é porque a noite terminou, mas porque ela se adaptou a viver nesta. Não só a aceitou, mas reconheceu a graça extraordinária que estabeleceu para ela. “Comecei a amar minha escuridão, porque creio que é uma parte, uma pequenina parte, da escuridão e do sofrimento em que Jesus viveu na terra” (8).

A flor mais perfumada da noite de Madre Teresa é seu silêncio sobre isso. Tinha medo, ao falar disso, de fazer-se notar. As pessoas mais próximas a ela não suspeitavam de nada, até o final, deste tormento interior da Madre. Por ordem sua, o diretor espiritual teve de destruir todas as suas cartas e se algumas foram salvas é porque ele, com permissão dela, fez uma cópia para o arcebispo e futuro cardeal T. Picachy, as quais foram encontradas após a morte dela. O arcebispo, felizmente, rejeitou a petição que lhe fez também Madre Teresa de destruí-las.

O perigo mais insidioso para a alma na noite escura do espírito é o de… perceber que se trata, precisamente, da noite escura, daquilo que os grandes místicos viveram antes dela e, portanto, formar parte de um círculo de almas eleitas. Com a graça de Deus, Madre Teresa evitou este risco escondendo de todos seu tormento sob um eterno sorriso. “Todo o tempo sorrindo, dizem de mim as irmãs e as pessoas. Pensam que meu interior está cheio de fé, confiança e amor… Se só souberem como minha aparência alegre não é senão um manto com o qual cubro vazio e miséria!” (9).

Os Padres do deserto dizem: «Por grandes que sejam tuas penas, tua vitória sobre elas está no silêncio» (10). Madre Teresa o pôs em prática de forma heróica.

Madre Teresa de Calcutá e Padre Pio de Pietrelcina

Por ocasião da canonização de Padre Pio de Pietrelcina, os observadores leigos expressaram o parecer de que a santidade do místico Padre Pio era uma santidade arcaica, diferentemente da de Madre Teresa, a santa da caridade, que seria uma santidade moderna. Agora descobrimos que também Madre Teresa era uma mística (que Padre Pio era também um santo da caridade basta para demonstrá-lo a obra que ele realizou no “alívio do sofrimento”).

O erro é contrapor estas duas marcas da santidade cristã, que vemos, ao contrário, com freqüência unidas admiravelmente, isto é, altíssima contemplação e intensíssima ação. Santa Catarina de Gênova, considerada uma das maiores da mística, foi desde Pio XII proclamada patrona dos hospitais na Itália por sua obra e a de seus discípulos a favor dos enfermos e dos incuráveis, que recorda de perto a obra de Madre Teresa em nossos dias.

Em um belo artigo, escrito na ocasião da beatificação, um autor indiano define Madre Teresa como «uma irmã para Gandhi» (11). Certamente muitas marcas reúnem as duas grandes almas, os dois Mahatma, da Índia moderna, mas é ainda mais justo, creio, ver em Madre Teresa “uma irmã para Padre Pio”. Lhes une não só a mesma veneração da Igreja, mas também um mesmo ciclo de glória de parte da opinião pública mundial. Uma se distinguiu sobretudo nas obras de misericórdia corporais, o outro nas obras de misericórdia espirituais. Mas foi precisamente Madre Teresa a que recordou ao mundo de hoje que a pobreza pior não é a dos pobres de coisas, mas a dos pobres de Deus, de humanidade e de amor, a pobreza, em suma, do pecado.

A marca que mais aproxima estes dois santos é, talvez, precisamente a longa noite escura na qual viveram toda a vida. Sempre recordarei a impressão que tive ao ler o relato com que Padre Pio fazia de seus estigmas a seu pai espiritual. Ele terminava fazendo suas as palavras do salmo que diz: “Senhor, não me corrijas em teu enojo, em teu furor não me castigue” (Sal 38, 2). Estava convencido e esta convicção lhe acompanhou toda a vida, de que os estigmas não eram um sinal de predileção e de aceitação de parte de Deus, mas, ao contrário, de sua rejeição e do justo castigo divino por seus pecados. Foi aquilo o que me abriu os olhos sobre a estatura mística deste irmão meu do qual, até então, me havia interessado pouco.

Para irradiar luz, estas duas almas tiveram que passar a vida na escuridão, convencidas, além disso, de “enganar as pessoas”. São Gregório Magno diz que a característica dos homens superiores é que “na dor da própria tribulação, não descuidam da convivência dos demais; e enquanto suportam com paciência as adversidades que os golpeiam, pensam em ensinar aos demais o necessário, semelhantes nisso a certos grandes médicos que, afetados estes mesmos, esquecem suas feridas para atender os demais” (12). Este sinal resplandece em grau eminente na vida de Madre Teresa e de Padre Pio.

3. Não só purificação

Por que este estranho fenômeno de uma noite do espírito que dura praticamente toda a vida? Aqui há algo novo a respeito dos que viveram e explicaram os mestres do passado, incluindo São João da Cruz. Esta noite escura não se explica com a única idéia tradicional da purificação passiva, a chamada via purgativa, que prepara à via iluminada. Madre Teresa estava convencida de que se tratava precisamente disto em seu caso; pensava que seu eu era particularmente duro de vencer, se Deus se via obrigado a tê-la durante tão longo tempo nesse estado.
Mas isto não era certo. A interminável noite de alguns santos modernos é o meio de proteção inventado por Deus para os santos de hoje que vivem e trabalham constantemente sob os focos da mídia. É o traje de amianto para quem deve ir entre as chamas; é o isolamento que impede a corrente elétrica de sair provocando curtos-circuitos…

São Paulo dizia: “Para não me envaidecer com a sublimidade dessas revelações, foi-me dado um espinho na carne” (2 Cor 12, 7). O espinho na carne, que era o silêncio de Deus, se revelou eficaz para Madre Teresa: a preservou de todo entusiasmo em medo a tudo o que o mundo dizia dela, também no momento de receber o prêmio Nobel da paz. “A dor interior que sente –dizia– é tão grande que não me afeta nada toda a publicidade e o falar das pessoas”. Também isso une Madre Teresa e Padre Pio. Um dia, Padre Pio, olhando pela janela a multidão reunida na praça, perguntou maravilhado ao irmão que tinha ao lado: “Por que vieram todos estes?”, e a resposta: “Por você, Padre”, retirou-se rapidamente suspirando: “Se só soubessem…”.

Mas existe uma razão ainda mais profunda que explica estas noites que se prolongam durante toda uma vida: a imitação de Cristo, a participação na noite escura do espírito que envolveu Jesus no Getsemani e na qual morreu no Calvário, gritando: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonou?”. Na carta apostólica Novo Millennio Ineunte, a propósito do “rosto doente” de Cristo, o Papa escreve: “Ante este mistério, além de investigação teológica, podemos encontrar uma ajuda eficaz naquele patrimônio que é a “teologia vivida” dos Santos. Estes nos oferecem algumas indicações preciosas que permitem acolher mais facilmente a intuição da fé, e isto graças às luzes particulares que alguns deles receberam do Espírito Santo, ou inclusive através da experiência que eles mesmos tiveram dos terríveis estados de prova que a tradição mística descreve como “noite escura”. Muitas vezes os Santos viveram algo semelhante à experiência de Jesus na cruz na paradoxal confluência de felicidade e dor”(13).

A carta cita a experiência de Santa Catarina de Siena e de Teresa do Menino Jesus. Agora sabemos que poderia citar também o exemplo de Madre Teresa. Ela chegou a ver cada vez mais claramente sua prova como uma resposta a seu desejo de compartilhar o «Lugar» de Jesus na cruz.
«Se a pena e o sofrimento, minha escuridão e separação te dá uma gota de consolação, Jesus meu, faz de mim o que quiseres… Imprime em minha alma e vida o sofrimento de teu coração. Quero saciar tua sede com cada gota de sangue que possa encontrar em mim. Não te preocupes de voltar logo; estou disposto a esperar-te toda a eternidade» (14).

Seria um grande erro pensar que a vida destas pessoas seja toda sombrio sofrimento. A carta Novo Millennio Ineunte, ouvimos, fala de uma «paradoxal confluência de felicidade e dor». No fundo da alma, estas pessoas gozam de uma paz e alegria desconhecidas para o resto dos homens derivados da certeza, mais forte que a dúvida, de estar na vontade de Deus. Santa Catarina de Gênova compara o sofrimento das almas neste estado ao do Purgatório, e diz que este «é tão grande que somente é comparável ao do inferno», mas que existe nelas uma «grandessíssima alegria» que somente se pode comparar a dos santos no Paraíso (15).
A alegria e a serenidade que emanavam do rosto de Madre Teresa não eram uma máscara, mas o reflexo da união profunda com Deus, em que vivia sua alma. Era ela que se «enganava» sobre si mesma, não as pessoas. Continue lendo…



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