Um caminho a ser descoberto
A cada Censo do IBGE, notamos o crescimento do número de pessoas que se declaram sem religião, contudo é também notória a significativa busca pela dimensão espiritual, seja ela cristã ou não. Este fenômeno Pós-moderno, nos mostra que muitas pessoas, embora não adeptas a uma religião, vivem a sua dimensão espiritual a partir da religião que receberam por tradição familiar ou a partir da coleta de vários elementos religiosos, advindos de várias denominações cristãs ou religiões, uma espécie de self-service sincretista da fé.
No âmbito cristão-católico, sobretudo, após o Concílio Vaticano II, vimos despontar na Igreja “novas espiritualidades”, novos movimentos, novas comunidades, sociedades de vida apostólicas, fraternidades e tantos outros inúmeros grupos, um verdadeiro alvorecer espiritual de um novo tempo.
No entanto, diante de tantas ofertas de “espiritualidades cristãs” no interno da Igreja, surgem algumas perguntas: O que é a vida espiritual e qual a sua finalidade? Quando ela se inicia na vida de um cristão? A vida espiritual consiste em cumprir normas e práticas exteriores ou é a livre adesão a um Deus pessoal e que ama gratuitamente?
Antes de começarmos a falar sobre a Vida espiritual, é necessário dizer que em nosso tempo, na nossa atual cultura o termo espiritual, é frequentemente associado a tudo o que é imaterial1 , portanto, não concreto, abstrato. Essa leitura do termo espiritual leva a uma compreensão fragmentada e errada de que o espiritual pertence somente à esfera psíquica e racional do homem.
Neste sentido, para chegarmos a uma compreensão integral da Vida Espiritual, é necessário procurar não no horizonte tantas vezes tumultuoso que se encontra diante de nós, mas procurarmos na Tradição da Igreja, sobretudo, confiando na antropologia cristã dos Padres da Igreja que tiveram consciência da ação e presença do Espírito Santo.
Ora, uma vez que é o Espírito Santo, aquele que nos comunica a vida comunial e relacional, partindo desta realidade, deduzimos que da vida espiritual, só podemos falar a partir do Espírito Santo. Porque a vida espiritual é vida no Espírito Santo, com o Espírito Santo2 e, neste sentido, é espiritual tudo aquilo que é tocado pelo Espírito Santo.
Por isso, a vida espiritual é tudo aquilo que provém e, que é ligado ao Espírito Santo, é tudo aquilo que me fala do espiritual. Também o mundo físico, material e corporal pertencem à dimensão espiritual, graças à ação e a presença do Espírito Santo que através da Encarnação assumiu toda a realidade humana. Sendo assim, uma espiritualidade cristã que negasse a matéria e a dimensão corporal do ser humano, negaria o mistério da Encarnação do Verbo de Deus feito carne.
Neste sentido, todos os seres humanos enquanto criaturas filiais de Deus, são tocados e envoltos pelo Espírito. Mas, através do Batismo, sepultados com Cristo na sua morte, ressuscitamos com Ele para a Vida Eterna. Somos incorporados ao seu Corpo que é a Igreja, nos tornamos templo do Espírito Santo e libertados do mal. Adquirimos não por mérito, mas por graça, a maior dignidade que um ser humano pode ter: a filiação divina. Nos tornamos filhos de Deus Pai no seu Filho Jesus Cristo3 . Portanto, “A experiência batismal é o ponto de início de toda a espiritualidade cristã que se funda na Trindade”4 .
Segundo a visão tricotômica5 de São Paulo (1 Tes 5,23) e de alguns Padres da Igreja, o ser humano é unidade de espírito, alma e corpo6 . Este espírito que o homem trás dentro de si, é habitado pelo Espírito Santo, centro vital da pessoa, por meio do qual ela foi criada e participa do amor de Deus Pai. Neste sentido, quanto mais o espírito humano se abre na acolhida do Espírito Santo, mais o homem se torna espiritual, porque “o verdadeiro fim da nossa vida cristã consiste em possuir o Espírito de Deus7 ” que é a realidade mais pessoal do homem.
Nesta perspectiva, através do ícone do rosto de Cristo chamado Nerukotvornyj, que significa “não feito pelas mãos do homem”, podemos entender o movimento e o sentido da vida espiritual. O ícone foi escrito (pintado) sob o esquema de quatro círculos concêntricos8 :
I. Entre os olhos – Designa a participação pessoal do Espírito Santo no espírito humano. É o ponto vivificante, a partir do qual o Espírito comunica a vida como amor e a irradia na psique, no corpo e no cosmos. Portanto, representa a Graça dada pelo Criador a cada ser humano de ser abrir e acolher a ação divina.
II. Olhos e a fronte – É o círculo da alma. A dimensão psíquica, intelectual, que recolhe as diversas faculdades do ser humano: a inteligência, a vontade e o sentimento.
III. Cabelos, barba e boca – Formam o círculo do Corpo. Representam a dimensão mais, vulnerável do ser humano, exposta à caducidade e à morte. É sobretudo através deste círculo que percebemos o passar dos anos, os cabelos embranquecem e caem, a boca sensual que exprime a necessidade de comer para sobreviver se torna cheia de irregularidades.
IV. Aureola – É o círculo mais visível, de ouro mais puro. Indica que a luz do Espírito, a partir de dentro penetra o mundo psíquico e corpóreo envolve no amor toda a pessoa, e a transfigura de modo que essa seja percebida pelos outros.
O ícone do rosto de Cristo nos mostra que o ser humano que se abre à ação do Espírito Santo se torna aquilo que é chamado a ser; um homem aureolado de luz, porque permite ao Espírito de levar os frutos da vida divina na história, na humanidade renovada que vive do Espírito e no Espírito. Deste modo, o homem se torna um comunicador de Deus, porque tudo nele, as suas dimensões; intelectual, psíquica e corpórea são permeadas pelo Espírito Santo, todo o seu ser se torna morada do Espírito que comunica a Vida.
Neste sentido, podemos dizer que a vida espiritual não é alguma coisa que eu, como indivíduo fechado em mim mesmo possuo sozinho, nem mesmo uma disciplina ou prática ascética de troca de favores com Deus, ou seja, não vem do esforço humano, muito menos através de alguns conhecimentos sobre a fé como nos alerta o Papa Francisco, quando escreve na Evangelii gaudium sobre o mundanismo espiritual9 .
A vida espiritual é abertura ao Espírito de Deus que vem sobre todo homem para fecundar a terra do seu coração, de modo que o homem se torne uma pessoa capaz de transfigurar o Cosmo, porque repleto daquele Espírito comunial que tudo leva ao Pai. Neste caminho, nos ajuda São Nicola Cabasilas quando nos diz que a nossa única contribuição à Vida Espiritual, “consiste em cuidar dos dons que recebemos de Deus, guardar as graças e não jogar fora a coroa que Deus teceu para nós ao preço de muita fadiga e suor10 ”.
A vida espiritual enquanto é sinergia11 com o Espírito Santo e arte de fazer frutificar a sua presença em nossa vida, comporta uma postura fundamental; reconhecer o Espírito Santo em um modo assim radical, que isto se torne um “habitus” interior, que faça com que o ser humano viva uma constante abertura ao outro na vivência do amor kenótico, que se doa, porque reconhece no outro o centro do seu ser12. Neste sentido, entendemos que a verdadeira vida espiritual se vive na fé e no amor que abraça todas as coisas com a liberdade do Espírito que de tudo cuida e envolve toda a realidade, mas deixa livre porque é amor que se relaciona.
Deste modo, iluminados pela luz do Espírito Santo adquirimos o discernimento tão necessário em nosso tempo, para identificar os subjetivismos individualistas revestidos de mística promovidos por tantos. A vida espiritual não é, e não deve ser jamais confundida com bem-estar psicológico13 .
A espiritualidade cristã, só pode ser cristã se encarnada no chão da vida. Nosso Deus, se encarnou e se fez história para que a nossa história nele se tornasse história de salvação. Portanto, como Igreja, Povo de Deus e Corpo de Cristo, somos todos chamados, porque primeiramente, impulsionados pelo Espírito Santo que nos habita, a nos “empenharmos na transformação da realidade e no anúncio do Reino de Deus”14.
Padre Mateus Lopes
Estudante de Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma
1 Cf. RUPNIK, Nel fuoco del roveto ardente, Roma, 2015, 8.
2 Cf. SPIDILIK, manuale fondamentale di spiritualità, Roma, 1993, 12.
3 Cf. CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, n.1213-1274.
4 CNBB, Documento 105, Os Cristãos leigos e leigas na Igreja e na sociedade, n. 189.
5 Entende-se por visão tricotômica, a unidade de espírito, alma e corpo da pessoa humana.
6 Cf. RUPNIK, Nel fuoco del roveto ardente, Roma, 2015, 39.
7 cf. SPIDILIK, Spiritualità dell’Oriente Cristiano, Roma, 1985, 30.
8 Cf. SPIDILIK, RUPNIK, La fede seconde le icone, Roma, 2011, 77-80.
9 FRANCISCO, Evangelii gaudium, 93-97.
10 NICOLA CABASILAS, La vita in Cristo, Roma, 2017, 42.
11 Embora o termo seja mais complexo, entendemos por Sinergia, a colaboração humana à Graça divina. Uma abertura e um fazer que permite ao Espírito de Deus de agir plenamente em nós. Um exemplo concreto de Sinergia é o Sim da Virgem Maria a Deus, sim sem reservas que permitiu que a ação e vontade de Deus se realizassem concretamente.
12 Cf. RUPNIK, Nel fuoco del roveto ardente, Roma, 2015, 37-38.
13 Cf. CASEL, O., O Mistério do Culto no Cristianismo, São Paulo, 2011, 52.
14 CNBB, Documento 105, os Cristãos leigos e leigas na Igreja e na sociedade, n. 195.