Numa antiga entrevista a respeito da Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia (SC), dom Piero Marini, mestre de cerimônias durante o pontificado de João Paulo II, afirmava que, durante duas décadas, cada vez, antes de preparar as celebrações pontifícias sempre se reportava ao texto conciliar para estudá-lo. Dom Marini diz que sempre descobria algo novo e reafirmava, também, aquelas contribuições fundamentais do documento, garantindo, assim, a autenticidade das celebrações papais, segundo a perspectiva da reforma litúrgica.
Inspirado por essa prática, ao reler a SC deparei-me com a seguinte afirmação: “O Sacrossanto Concílio, que se propõe a fomentar sempre mais a vida cristã entre os fiéis (…), favorecer tudo o que possa contribuir para a união dos que creem em Cristo (…) julga seu dever cuidar de modo especial da reforma e do incremento da Liturgia.”1 Note-se que a preocupação primeira dos padres conciliares não são os ritos em si mesmos que deveriam ser objeto da reforma, mas a vida cristã. Estabelece-se, então, o horizonte existencial do culto cristão, como escopo dos empenhos da Igreja no que concerne à reforma e incremento da Liturgia nos anos sucessivos. Como se não bastasse, a SC 2 explicita a questão, desdobrando-a: “Pois a Liturgia (…) contribui do modo mais excelente para que os fiéis exprimam em suas vidas e aos outros manifestem o Mistério de Cristo e a genuína natureza da Igreja (…)”. O Concílio, já na introdução da Constituição SC estabelece o caráter nuclear da Liturgia para a vida da Igreja e sua inserção no mundo, o que desenvolverá nos números seguintes.
De fato, se repararmos as orações, depois da comunhão do Missal Romano, perceberemos em muitas delas a insistência explícita em articular a celebração litúrgica e a vida dos fiéis. Citamos aqui alguns desses casos, percorrendo alguns Domingos do Tempo Comum:
1º Domingo do Tempo Comum
Deus todo-poderoso, que refazeis as nossas forças pelos vossos sacramentos, nós suplicamos a graça de vos servir por uma vida que vos agrade. PCNS.2
2º Domingo do Tempo Comum
Penetrai-nos, ó Deus, com o vosso Espírito de caridade, para que vivam unidos no vosso amor os que alimentais com o mesmo pão. PCNS.
9º Domingo do Tempo Comum
Ó Deus, governai pelo vosso Espírito aos que nutris (…) Dai-nos proclamar nossa fé não somente em palavras, mas também na verdade das nossas ações. PCNS.
10º Domingo do Tempo Comum
Ó Deus que curais nossos males, agi em nós por esta Eucaristia, libertando-nos das más inclinações e orientando para o bem a nossa vida. PCNS.
16º Domingo do Tempo Comum
Ó Deus, permanecei junto ao povo (…), para que despojando-nos do velho homem, passemos a uma vida nova. PCNS.
22º Domingo do Tempo Comum
Restaurados à vossa mesa pelo pão da vida, (…) fortifique os nossos corações e nos leve a vos servir em nossos irmãos e irmãs. PCNS.
25º Domingo do Tempo Comum
Ó Deus, auxiliai sempre os que alimentais com o vosso sacramento, para que possamos colher os frutos da redenção na liturgia e na vida. PCNS.
29º Domingo do Tempo Comum
Dai-nos, ó Deus, colher os frutos da nossa participação na Eucaristia para que, auxiliados pelos bens terrenos, possamos conhecer os valores eternos. PCNS.
33º Domingo do Tempo Comum
Tendo recebido em comunhão (…) possa esta Eucaristia (…) fazer-nos crescer em caridade. PCNS.
Como se pode constatar acima, uma vez que a celebração está emoldurada por duas preces, a oração do dia e a oração depois da comunhão, essa última nos oferece o destino ou o horizonte vital para o qual a comunidade se encaminha ao celebrar a memória do Senhor. Jungmann, grande historiador da Liturgia, em especial da Missa, afirma que a súplica dessa oração se encaminha para determinar “o efeito do sacramento.”3 Esse efeito, conforme se pode notar no teor diferenciado das súplicas, se articula com as várias facetas da vida humana. Desse modo, se a oração do dia efetua a passagem da vida cotidiana à celebração, a oração depois da comunhão realiza o caminho inverso, conduzindo os fiéis na passagem entre a Missa e retorno da vida ordinária, mediado pelo rito de envio.4
Mas não é apenas a oração depois da comunhão que, na Missa, estabelece este vínculo estreito com a existência cristã dos fiéis. A própria compreensão teológico-ritual da Celebração Eucarística como banquete sacrifical, recuperada pela reforma litúrgica do Concílio Vaticano II nos repropõe essa conexão entre Liturgia e Vida. Com clareza, escreve Andrea Grillo: “Uma vida que conhece o sentido das relações, da comunidade, dos vínculos, que conhece o que significa haver transformado a vida em dom, encontra no ambiente da refeição o seu lugar originário. Ao se encontrarem para a refeição, os homens dão corpo ao amor que Deus teve e tem por eles. A ceia é a “interpretação mais alta” da Cruz, como morte e ressurreição de Cristo (…). É muito claro como o compromisso ético com o mundo, o fato que os cristãos possuem deveres, não se situa antes da Celebração Eucarística, mas depois dela, quase jorrando desde uma experiência que fundamentalmente eles recebem no pão e no vinho do qual são alimentados.”5
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1Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, n. 1.
2PCNS = Por Cristo, Nosso Senhor.
3JUNGMANN, J. A. Missarum Sollemnia. Origens, liturgia, história e teologia da missa romana. São Paulo: Paulus, 2010, p. 858.
4Cf. VVAA. L’Ordo Missae di Paolo VI. In. CHUPUNGCO, Anscar J. (Dir.) Scientia Liturgica. Roma: Piemme, 2003, p. 183.
5GRILLO, Andrea. La forma rituale dela fede Cristiana. Teologia della liturgia e dei sacramenti agli inizi del XXI secolo. Trapani: Il Pozzo di Giacobbe, 2011, p. 128.