A Liturgia das Horas traz para a oração do Ofício de Leituras do Sábado Santo a descida de Cristo aos infernos, cujo objetivo é buscar Adão e Eva, resgatando-os da morte para que participem da alegria de sua Morte e Ressurreição. Fabulosa compreensão da era patrística, que expande o significado da ação salvadora de Jesus não apenas para o presente e futuro, mas para o passado. O ícone que nos faz visualizar este mistério da morte e ressurreição do senhor resgatando o ser humano das origens, chamado “Anástasis” (palavra grega que significa ressurreição) traz Jesus sobre os portões do inferno, rompidos, tomando pelas mãos Adão e Eva, puxando-os para junto de si, para dentro da “mandorla” (aura luminosa que envolve seu corpo glorificado).
O itinerário quaresmal visa recuperar em nós a consciência deste acontecimento redentor. Tanto a leitura patrística do Ofício de Leituras citado acima, quanto o ícone da Anástasis nos reapresentam o conceito teológico da remissão. Por sua entrega total, o Senhor Jesus nos remiu, isto é, nos tomou de volta para o Pai, associando-nos a Ele. Este mistério nos é oferecido participar mediante a experiência sacramental da Iniciação Cristã. Essa, inclusive, é uma das razões teológicas que sustentam a antiga prática da celebração da iniciação cristã via a tríade sacramental: Batismo-Crisma-Eucaristia na Vigília Pascal.
Na Carta aos Efésios (Ef 1, 17-23) o apóstolo Paulo exprime de maneira simples e direta essa verdade teológica quando afirma: “Deus nos ressuscitou com Cristo e nos fez sentar nos céus em virtude da nossa união com Jesus Cristo.” A Quaresma busca elucidar esse fato teológico, mediante uma revisão profunda da vida dos fieis. Cada membro do Corpo de Cristo – a Igreja – deve avaliar e retomar o quanto se faz ou não associado a Cristo. Os exercícios quaresmais do jejum, da oração e da esmola deveriam ser concebidos nessa perspectiva e não como práticas desconectadas da ação remissiva de Cristo, pela qual Ele nos retoma para a vida de seu Pai mediante a comunhão em seu Corpo e Sangue, cuja Eucaristia simbolico-sacramentalmente realiza.
A mesma Carta aos Efésios insiste no papel da graça salvadora, pela qual a bondade de Cristo Jesus assumida por aqueles que a Ele estão associados são com Ele revificados. Trata-se de uma nova vida assumida na fé batismal, pela qual, unidos a Cristo mediante seu Espírito, empenhamo-nos, doamo-nos, cedendo nossa existência para que o mistério da comunhão como Pai se faça verificável. As boas obras que a Quaresma nos faz portadores, exercitadas pela tríade penitencial do jejum, oração e esmola, não são nossas, mas de Cristo e estão à nossa disposição para que, assumindo-as como nossas, sejamos retomados para Deus, sejamos de fato, remidos. Assim escreve o Apóstolo: “Nós fomos criados em Jesus Cristo para as boas obras, que Deus preparou de antemão para que nós a praticássemos.”
Cabe nos perguntar se, verdeiramente, a Quaresma tem operado em nós este processo, pelo qual recuperamos a imagem do ser humano original, plasmado por Deus e cujo modelo primeiro é o próprio Verbo – Cristo Jesus – que entre nós veio habitar. Assemelhando-nos ao “Novo Adão” – Jesus – o “Antigo Adão” é recuperado (remido)…
Padre Márcio Pimentel
Liturgista