Por que e para que a Igreja tem uma Liturgia da Palavra? Queremos aprofundar estas e outras questões utilizando como caminho um método de estudo que denominamos “mistagógico”, construído a partir de cinco passos. Hoje, começaremos por apresentar uma breve descrição do rito e sua fundamentação bíblica.
Palavra do Senhor – Glória a vós Senhor!
É muito fácil constatar que toda celebração cristã tem por elemento constitutivo uma Liturgia da Palavra. Mesmo naquelas ocasiões mais extraordinárias, quando se exige certa brevidade no rito, como o é o caso do Batismo de uma criança em perigo de morte, se prevê o mínimo de ritualidade da Palavra, reconhecível na fórmula evangélica “eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.1” É impossível pensarmos a fé sem a primazia e atuação da Palavra de Deus que é sua fonte. Muito menos no que se refere à celebração litúrgica, pois nela encontramos a fé em ato.
Costumeiramente a Liturgia da Palavra se dá após os ritos de abertura, nos quais a assembleia dos que celebram é constituída. Em geral, as pessoas tomam assento e escutam a proclamação dos textos sagrados extraídos (na maioria da vezes) da Bíblia. Tomam parte na proclamação, para além da escuta, mediante algum canto interlecional, como o Salmo Responsorial, Gradual ou Responsório e também por aclamações que se dão no fim e ao início das leituras. Em seguida, é comum uma exortação ou homilia que se desenvolve em petições (Oração dos Fieis). Essa é a estrutura que, geralmente, temos na celebração dos Sacramentos e Sacramentais. O Ofício Divino, por sua vez, foge um pouco dessa estrutura, mas constitui-se, do início ao fim, uma Liturgia da Palavra propriamente dita.
No princípio, Deus criou o céu e a terra com Sabedoria
Bereshit, “No princípio” – Assim começa a saga da criação e, com ela, da revelação de Deus no contexto do universo por Ele criado. Sua fonte primeira é a Palavra Divina que a tudo cria, dá consistência e sustêm. O Salmo 33, por exemplo, recorda que “o céu foi feito com a Palavra do Senhor”, o Salmo 147 insiste na eficácia da Palavra Divina que estabelece o tempo (neve, geada, chuva…) e a ética (deu seus estatutos e normas a Israel); o Salmo 107,20 diz que a Palavra é enviada para curar e preservar a vida do ser humano. Todos estes trechos nos fazem perceber que a origem do universo, com especial destaque para o ser humano, homem e mulher, e sua continuidade dependem exclusivamente do Verbo de Deus. Como muito bem o dirá Marko Rupnik: “Toda a criação é marcada pelos traços do Verbo, por meio do qual e em vista do qual foi criada.2”
Bechochmá, “Com Sabedoria” – Uma antiga versão aramaica da Torá traduz “No princípio Deus criou o céu e a terra” por “Com sabedoria, Deus criou o céu e a terra. 3” Essa tradição sobre o primeiro versículo bíblico da Torá está em perfeita consonância com o ensinamento de São Paulo sobre a Sabedoria que, adotando a perspectiva dos escritos sapienciais (Provérbios, Jó, Eclesiastes, etc.), enxerga nela a mediadora da obra da criação4. Aqui vale recordar um breve texto conhecido como Elogio da Sabedoria: “Saí da boca do Altíssimo e como neblina cobri a terra (…) Então o Criador de todas as coisas deu-me uma ordem, aquele que me criou armou minha tenda em Jacó (…) Criou-me antes dos séculos, desde o princípio, e para sempre não deixarei de existir.5” O Apóstolo, por sua vez, identificará essa Sabedoria de Deus com Cristo Jesus crucificado6. O prólogo de João também pode ser lido nessa mesma direção ao falar da preexistência do Verbo, pelo qual Deus tudo fez. Um eco perfeito à uma antiga tradição que via na Torá o projeto a partir do qual o Senhor criou o mundo e, sobretudo, o ser humano – aquele que deveria compartilhar com Ele sua Palavra, constituindo-se seu parceiro de colóquio permanente7.[7]
Desde o início, uma aliança
Seguindo essas intuições, dando uma olhada na Haftará (passagem tirada dos livros proféticos, que os judeus leem a conclusão do trecho da Torá lida aos sábados e dias especiais) escolhida para concluir a primeira porção tirada do Livro do Gênesis descobrimos outra dimensão nesta relação entre Palavra de Deus/Sabedoria e Criação : “Assim diz Deus, o Senhor, que criou os céus e os estendeu e fez a imensidão da terra e tudo o que dela brota, que deu o alento aos que a povoam e o sopro da vida aos que se movem sobre ela. “Eu, o Senhor, te chamei para o serviço da justiça, tomei-te pela mão e te modelei, eu te pus como aliança para o povo, como luz das nações (…)8.” Nesse trecho e demais versículos que seguem, a vida do ser humano é interpretada, realmente, como “um diálogo existencial entre a criatura e o seu Criador – um diálogo constante e contínuo”9. Essa “conversa divina” é conatural à condição criatural do ser humano, uma vez que ele foi tecido pela Palavra criadora. Em certa medida, originariamente, somos todos “textos (= tecido) vivificados” decorrentes e dependentes do Verbo da Vida: “A palavra ainda não me chegou à língua, e tu, Senhor, já a conheces inteira (…) Sim! Pois tu formastes os meus rins, tu me tecestes no seio materno10.”
A Haftará comentada acima traz um termo muito rico e de extrema importância para compreender e verificar a Liturgia da Palavra como um Rito de Aliança. O texto profético de Isaías afirma que o Servo do Senhor foi posto diante do povo como Berit, isto é, aliança. Sabemos que, antes mesmo de ser uma figura de Cristo Jesus, como o assume a teologia cristã, essa imagem que pode ser aplicada a toda comunidade de Israel ou a algum personagem histórico específico, pode ser concebida como compreensão do ser humano que, modelado pelo próprio Senhor11, é vocacionado ao testemunho de sua Palavra criadora perante a obra da criação. Afirmar o ser humano como berit é lê-lo como proclamação viva da fidelidade de Deus para com a obra criada, pela qual sua promessa é levá-la à plena comunhão de vida consigo. Berit é o tema unificador de toda a Torá e o podemos dizer, por extensão, de toda a revelação bíblica, do Gan Eden à Jerusalém Celeste, do Gênesis ao Apocalipse, do Antigo Adão ao Novo Adão, Cristo Jesus, morto e ressuscitado.
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[1] 1Cf. Ritual de Batismo de Crianças. A Iniciação Cristã, n. 21.1.
[2] 2RUPNIK, Marko I. Ainda que tenha morrido, viverá. Ensaio sobre a ressurreição dos corpos. Paulinas: São Paulo, 2010, p. 41.
[3] 3Targum de Jerusalém, citado por ANGEL, Marc D. Os ritmos da vida judaica. Uma análise dos ensinamentos básicos do judaísmo segundo o pensamento sefardi. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2009, p. 15.
[4] 4Cf. HAWTHORNE, Gerald F. MARTIN, Ralph P. REID, Daniel G. (orgs). Dicionário de Paulo e suas Cartas. Vida Nova, Paulus e Edições Loyola: São Paulo, 2008, p. 1118.
[5] 5Eclo 24,4.8-9.
[6] 6Cf. 1Cor 1,24; 2,27.
[7] 7Cf. ANGEL, Marc D. Os ritmos da vida judaica. Uma análise dos ensinamentos básicos do judaísmo segundo o pensamento sefardi. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2009, p. 16. Ver tb. KLAPHOLTZ, Rabbi Y. Tesouro de Agadot da Torá. Volume Um. Colel Torá Temimá do Brasil: São Paulo, p. 21. As Constituições Apostólicas também falam da Palavra criadora como Sabedoria à qual Deus convida para a ação criadora: “Com efeito, disse à tua Sabedoria: “Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança…”
[8] Is 42,5ss.
[9] GORODOVITS, David. Na Espiral do Tempo. Uma viagem pelo calendário judaico. Sêfer: São Paulo, 2008, p. 9.
[10] Sl 139,4.13.
[11]Note-se que a palavra hebraica usada para descrever o Senhor que modela o ser humano em Gn 2,7 é repetida no texto de Isaías.
[12]ANTOLOGIA LITÚRGICA. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Secretariado Nacional de Liturgia: Fátima, 2003, p.174.
Pe. Márcio Pimentel
Liturgista