A sugestiva imagem do Papa, inclinando-se para a benção do Patriarca cristão
ortodoxo, prolongam a capacidade de Jesus de reconhecer a fé do outro.
A fé cristã não nos torna arrogantes. Ao contrário, nos torna humildes.
“Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes” (Tg 4,6)
Pe Danilo César*
A liturgia do Domingo que passou nos apresentou um oficial romano, pagão, como modelo de fé. De fato, ele arrancou um grande elogio de Jesus: “Eu vos declaro que nem mesmo em Israel encontrei tamanha fé”. A resposta do oficial ultrapassou o ambiente bíblico e encontrou lugar no rito eucarístico. Ao apresentar o pão e o vinho consagrados, o padre diz: “Felizes os convidados para a ceia do Senhor. Eis o Cordeiro…”, e o povo responde com as palavras do nosso protagonista, ligeiramente adaptadas: “Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma palavra e serei salvo”. O relato, bem ao gosto do evangelista Lucas, valoriza a salvação como dom universal, não restrito às fronteiras religiosas de Israel. Noutra passagem, na famosa parábola do Bom Samaritano (Lc 10,29-37), Lucas mostra Jesus evidenciando a indiferença dos religiosos judeus frente ao homem maltratado e caído à beira do caminho e ressaltando a operosidade do Samaritano.
O evangelho nos faz pensar em várias direções: sobre a fé, sobre a palavra de Jesus, sobre a relação com as pessoas de outras crenças, sobre a nossa própria fé e prática religiosa, sobre as mediações que presentificam o agir salvífico de Deus e, ainda, sobre a necessária mudança de lugar e transformação que a fé deve operar na vida de quem acredita. É uma boa meditação para a nossa semana!
Os romanos e os judeus
Os romanos eram um povo belicoso, agressivo e dominador. No tempo de Jesus, Israel era, de todos os modos, dominado pelos romanos. Pesavam sobre os judeus pesados impostos, a violência do exército, o desrespeito cultural e religioso. O oficial romano parecia bem diferenciado para esse contexto: era estimado pelo povo e até construíra uma sinagoga para os judeus (cf. Lc 7,4-5). Uma embaixada de anciãos dos judeus foi até Jesus para interceder por ele. O próprio Jesus não se negou a prestar-lhe favor. O evangelista Mateus, no relato paralelo ao de Lucas, ao dizer que Jesus prontamente propõe-se a ir ao encontro do servo adoecido: “Vou curá-lo” (cf. Mt 8,7), demonstra que as barreiras políticas não foram um problema para o Mestre. Já a hipótese difundida, de ser o servo um escravo sexual do oficial romano, também não encontra respaldo no texto, ainda que se possa admitir uma estima grande por parte do oficial e até mesmo a existência de tais costumes entre os pagãos. Contudo, o perfil do Oficial era mesmo diferenciado. Ainda que houvesse tais indícios textuais, a cura, a salvação operada por Jesus só receberia reforço para seus contornos universalistas. Nesse quesito, o texto não carece desse elemento para afirmar o alcance universal da fé e da salvação.
A fé que se demonstra
Fé, palavra que no hebraico se assemelha na raiz ao nosso amém, tem a ver com depositar confiança em algo sólido, seguro, firme. Ter fé é confiar nesse algo, aderir a alguma coisa ou a alguém que suscita, inspira segurança e firmeza. O oficial romano encontra essa firmeza em Jesus. Ele manda os anciãos para que lhe peçam seu favor e ao fazer isso, muda seu status: sai do lugar do dominador – uma autoridade romana – e migra para o lugar do necessitado, do que pede ajuda, não para si, mas para o servo enfermo. Pelo servo não hesita em “humilhar-se”, ele que ajudou, construindo uma sinagoga para os judeus. Tendo Jesus já se aproximado da casa, o oficial demonstra sua confiança ainda maior: envia outra embaixada dispensando a presença física de Jesus. Provavelmente o faz por motivos religiosos, pois compreende que Jesus, um mestre judeu, não poderia entrar em sua casa, sem tornar-se impuro para o culto. Declara-se indigno e demonstra confiar na força da palavra do Mestre, ao exemplificar com suas próprias categorias militares o quanto confia na realização da cura do seu servo.
Em três âmbitos demonstra, ou pelo menos se insinua a fé que se alia a atitudes muito concretas: pela construção da sinagoga e pela sensibilidade para com a pessoa e o status religioso de Jesus, insinua-se a realização da sua fé no âmbito cultual (liturgia). Pela preocupação com o servo, a quem poderia simplesmente substituir por outro, demonstra a concretude da sua fé no serviço (diaconia). Pela confiança na força da Palavra de Jesus, concretiza sua confiança, sua fé, na comunicação da salvação, demonstrando grande testemunho (martyria). Se tomamos como parâmetro a carta de Tiago, a imperiosa necessidade das obras para a verificação da fé, comprova-se nas atitudes desse oficial. Além disso, a fé que tem, o faz mudar: de oficial romano dominador para alguém que humildemente pede ajuda a um membro do povo dominado. De patrão para amigo, preocupado com a saúde do servo a quem muito estimava. Sua fé é operosa e o move na direção do irmão necessitado e de Deus, na pessoa do Divino Mestre. Mereceu o elogio de Jesus!
Um Deus que ouve o pedido dos pagãos
A oração de Salomão (primeira leitura) realiza-se em Jesus, fora do contexto cultual do Templo. Deus ultrapassa as fronteiras religiosas estabelecidas pelo ser humano. Sua graça e salvação alcança a todos e, no seu Filho Jesus, não se faz surdo ao clamor dos que lhe procuram. O evangelista João sublinhará esse traço da identidade acolhedora de Jesus: “se alguém vier a mim, eu não o mandarei embora” (Jo 6,37). A acolhida de Jesus e a oração de Salomão contrastam com a atitude refratária e exclusivista de muitos judeus do tempo em que os evangelhos foram escritos. Ao contrário, confirmam a vocação universal de Israel como sinal da salvação de Deus, conforme cantado pelo salmo de resposta: “cantai louvores ao Senhor todas as gentes, povos todos festejai-o!” Esse traço, tão marcante no evangelho de Lucas, confirma o evento cristão como verdadeira “boa notícia” (evangelho) para todos e motiva a missão da Igreja nascente e da Igreja de hoje, desafiada pelo Papa Francisco a sair ao encontro das periferias existenciais.
Além disso, o reconhecimento, por parte de Jesus, de uma fé maior, fora dos limites religiosos e culturais judaicos, trazem uma formidável perspectiva de abertura para o agir de Deus nas realidades mais impensadas: um romano, pagão, em princípio social e politicamente detestável e impuro, atrai Jesus para sua casa, arranca-lhe um elogio e alcança d’Ele uma graça! Deus rompe as barreiras humanas.
A fé dos que praticam a religião
Hoje continuamos a repetir, em todas as missas, “Senhor, eu não sou digno de que entres em minha morada..”. Contudo, a frase não deve ser descontextualizada de seus elementos existenciais, tão ricamente narrados pelo texto que ouvimos no domingo que passou. A humildade do Oficial rima com sua sensibilidade para com o servo e para com Jesus. Trata-se de uma atitude humilde que, contudo, não é vazia, nem estéril, fruto de uma religiosidade arrogante e inoperante, pois não o impede de amar o próximo e nem de voltar-se para Deus. Sua autoproclamada indignidade encontra na liturgia um outro reconhecimento por parte dos fiéis que oferecem o sacrifício eucarístico. É Deus quem nos torna dignos de nos aproximar de seu memorial: “nós vos oferecemos, ó Pai, o pão da vida e o cálice da salvação; e vos agradecemos porque nos tornastes dignos de estar aqui na vossa presença e vos servir”. O reconhecimento que Jesus faz da sua fé, dignifica o humilde oficial. Compreendemos assim outra passagem do evangelho: “quem se humilha será exaltado” (Lc 14,11).
A fé do oficial atrai Jesus para sua casa. Ele não entra ali fisicamente, mas sua Palavra forte e salvadora alcançam o servo e lhe restaura a saúde. Aqui podemos perguntar: a fé que cremos é motivo de aproximação de Deus e dos irmãos, seja quem for, ou estandarte da nossa empáfia e arrogância? O oficial que poderia arrogar para si direitos, seu status de autoridade romana, os favores que concedera outrora… Nada disso! Com humildade recorre a Jesus. O texto nos implica de outras maneiras: em que medida demonstramos concretamente a nossa fé? Como realizamos aquilo que afirmamos crer? Em que medida nos deixamos transformar pela nossa experiência de Deus? Permitimos que a nossa fé nos tire do nosso lugar, das nossas zonas de conforto e das nossas seguranças? Somos movidos na direção dos outros e do Outro que é Deus?…
É possível uma fé sem religião…. É possível, mas triste, uma religião sem fé. É possível, necessário e belo uma religião que colabora com a fé. Deixemos que a oração rezada pós a comunhão, resuma a experiência da celebração dominical e prolongue em todos os dias da nossa semana, a admiração de Jesus que desejamos para nossa vida espiritual: “Dai-nos proclamar nossa fé não somente em palavras, mas também na verdade de nossas ações, para que mereçamos entrar no reino dos céus. Por Cristo, Senhor nosso”. Amém!