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A espiritualidade narcísica

 

Vivemos um fenômeno considerado característico da nossa época: o individualismo exacerbado. Esse problema se define pela constante autorreferência ao opinar sobre algo e construir um pensamento ou argumentação. Todas as experiências parecem partir do arcabouço sentimental, sensorial e intelectual do indivíduo específico que a realiza, e tende a confirmar e justificar a sua posição como verdade diante das demais opiniões, e caso ocorram conflitos passa-se à tão esquiva resposta “EU penso assim” “cada UM pensa de um jeito” etc.

 

Porém esse fenômeno tem chegado à nossa experiência religiosa, e instaurado o que denomino de “espiritualidade narcísica1 ”. Esse comportamento tem minado toda uma tradição construída através da experiência comunitária do Evangelho, e criado uma relação intimista com um pseudo deus adaptado às nossas necessidades, vontades e “pontos de vista”. Esse movimento é perigoso, pois cria um deus multifacetado que se confronta um com o outro. Um deus que ama a uns particularmente, que distribui bênçãos a quem é mais “santo”, que trata os indivíduos de forma discriminada. Um  deus que parece não ser para todos. Características que não são do Deus verdadeiro, que ama todos indistintamente. Isso enfraquece a vivência comunitária e a construção da comunidade cristã, pois valoriza um contato exclusivo (individualista) com Deus e uma fé subjetiva que não perpassa pelas nuances da partilha. Uma fé que se fundamenta no individuo que a vive, consequentemente, desmoronará quando ele estiver mais necessitado dela,  e este deus idealizado conforme as conveniências desta pessoa, certamente, irá sucumbir.

Ouso neste ponto fazer uma livre interpretação da passagem da casa construída sobre a rocha, onde claramente podemos perceber que o fundamento da experiência de fé não pode ser referenciado em nós, mas sim na Igreja enquanto comunidade de fé. Jesus é claro em seu ensinamento como citado abaixo: a “casa” construída na areia facilmente desmoronará.

 

A “espiritualidade narcísica”, que sufoca a verdadeira espiritualidade cristã baseada na vida comum, deve ser destituída e para o Evangelho chegar com autenticidade a todos os homens

“Assim, todo o que ouve estas minhas palavras e as põe em prática pode ser comparado a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as torrentes, sopraram os ventos; precipitaram-se contra esta casa, e ela não desabou, pois seus fundamentos assentavam-se na rocha. E todo o que ouve as palavras que acabo de dizer e não as põe em prática pode ser comparado a um homem insensato, que construiu sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as torrentes, sopraram os ventos; vieram dar contra esta casa, e ela desabou, a sua ruina foi total.” (Mt 7, 24-27)2

Pode parecer difícil estabelecer onde é esta rocha, porém alguns capítulos à frente o próprio Jesus nos diz onde deve ser o fundamento da igreja. É interessante perceber como essa declaração do Cristo acontece. O primeiro movimento é de Pedro, que após ser arguido sobre quem as pessoas dizem ser o Filho do Homem – pseudo imagens de Jesus – o apóstolo responde com segurança.

 “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”.  Após afirmar a identidade verdadeira de Jesus é que este o responde “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, pois não foram a carne e o sangue que te revelaram isso – a realidade humana3 – mas o meu Pai que está nos céus. E eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja” (Mt. 16, 16-18)4

A conversa entre eles prossegue, porém o ponto importante para nossa reflexão está aqui identificado. A rocha é Pedro, porém não simplesmente institucionalizando este como o pilar da Igreja, mas sim a sua postura de identificar a verdadeira identidade de Cristo e testemunhá-lo aos demais. É neste pilar que nossa fé deve ser instaurada. Devemos enfrentar o narcisismo dentro de nós e nos libertar desse emaranhado de fios que nos levam à soberba de achar que nossa construção temática é a verdade universal, e ainda pior, verdade de fé. Não podemos assentar em um trono narcísico e legislar sobre a fé dos outros, ensinando, orientando e construindo um deus que não condiz com a verdadeira identidade de Jesus. É por isso que a tradição da Igreja vem, durante centenas de anos, vivendo o Evangelho e desvelando, a todos nós membros, a verdadeira face de Jesus.

Por fim, a saída para essa espiritualidade narcísica é o abandono da “minha espiritualidade” para viver a “espiritualidade de Cristo” que, consequentemente, é a espiritualidade da Igreja. Assim, o caminho é simples. Abandonar nosso egocentrismo para contemplar carinhosamente a verdadeira imagem de Cristo. Desta forma a “espiritualidade narcísica”, que sufoca a verdadeira espiritualidade cristã baseada na vida comum, deve ser destituída e para o Evangelho chegar com autenticidade a todos os homens. Que a coragem para permanecer na caminhada nos seja dada por Deus e que possamos, conscientes de que é necessário mudar, assumir a nossa missão cristã.

 

Daniel Couto
Secretário da comissão Arquidiocesana de Liturgia da Arquidiocese de BH
Graduando em Filosofia pela UFMG
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1Segundo consta da mitologia grega, Narciso, filho do deus rio-Cefiso e da ninfa Liríope era rapaz de singular beleza, no dia de seu nascimento, o adivinho Tirésias vaticinou que teria vida longa, porém, que jamais contemplasse a própria beleza. Certa vez, ao observar seu reflexo nas águas de um lago, apaixonou-se pela sua imagem, embevecido, ficou a observá-la até consumir-se. Ele só tinha olhos para si mesmo e passou a ignorar o mundo ao seu redor.
2Bíblia TEB, Tradução Ecumênica da Bíblia. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1994
3Essa inserção é minha dentro do texto bíblico associando a passagem com o tema que trato.
4Bíblia TEB, Tradução Ecumênica da Bíblia. Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1994



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