O ser humano estabelece com Deus formas variadas de relacionamento e, entre elas, a oração é usada como modo mais ordinário. De joelhos, sentado, deitado, de olhos abertos ou fechados, homens e mulheres de culturas diferentes e religiões diversas procuram entrar em contato com alguma divindade, sentida no íntimo de si ou pressentida no exterior, na natureza, em tudo.
Na Quaresma, a oração é um exercício especial. No chamado à conversão a resposta costuma ser balizada e fundamentada na oração. Recolher-se (Mt 6, 6) para conversar com Deus, “olhos nos olhos”, é dar espaço para a Palavra da vida irrigar o centro das nossas decisões cruciais sobre o nosso jeito de ser e de viver. Não se diz sim a Deus com uma palavra, mas com a força forjada na descida ao interior profundo de si, alcançado na oração. Desta experiência nasce, em resposta a Deus, um ser humano reconstituído, segundo a proposta lançada para transformar a própria vida.
Oração cristã é sempre saída. É êxodo rumo à terra prometida, à constituição de um Povo de Deus alicerçado na experiência de libertação, fruto da gratuidade do Pai |
Por isso, essa oração, tem como primeira finalidade descentrar aquele que ora. Para deixar Deus se manifestar mais plenamente (porque sempre está em nós, embora o sufoquemos), orar abre caminho para vermos com agudeza nossa natureza divina, dom do Próprio Deus. Nos vemos de modo diferente. Dizemos não à visão egocêntrica de nós mesmos, para enxergamos um Outro em nós, sua presença desde sempre, desde toda a eternidade, enraizado em nós, interior e superando-nos. Essa foi a experiência e constatação de Agostinho, na frase: “… tu eras mais interior do que o íntimo de mim mesmo e mais sublime do que o mais sublime de mim mesmo” (Confissões, Liv. III, VI, 11).
Só na sensibilidade embebida pela oração essa consciência se faz possível. Vamo-nos descobrindo imagem Dele, parte Dele e a Ele desejamos, como o mais digno de nós e para nossa vida, tudo isso na oração. A conversão que vem pela oração não esmaga, portanto, o ser humano. Antes, traz a liberdade para abraçar nossa natureza mais profunda (imagem de Deus), ofuscada pela experiência do pecado e suas matizes: ódio, vingança, egoísmo, ressentimento…
De alguma forma, rezar (sinônimo de oração, embora erroneamente se difunda que não), enquanto ato que intensifica nossa relação com Deus, nos desnuda, nos faz perder o medo de Deus (não é preciso nos vestir por causa da presença Dele: (Gn 3, 8-11), nos devolve ao paraíso, ainda sem a plenitude tão desejada. Sentimos a possiblidade de ficarmos na presença de Deus, de estarmos reconciliados, ligados novamente à fonte da vida. Oração é ponto de interseção, no qual Deus e nós passamos a habitar a mesma realidade amorosa, da qual nascemos continuamente sob o efeito da ação do Espírito Santo. E a modo cristão, nos permite chamar Deus de Paizinho, de papai, como quis e ensinou Jesus. De fato, nessa experiência tão acessível a qualquer pessoa somos reconstituídos no amor de Deus que nos chama para conviver na liberdade de filhos e filhas. É antecipação do paraíso.
A abertura de si a Deus, concedida pela oração, dirige-se também ao outro bem próximo de nós. A genuína experiência de Deus na oração desperta em nós interesse pelo irmão e irmã, imagens de Deus. E no sentido quaresmal o mais necessitado tem lugar de honra, pois é aviltado em sua dignidade de filho e filha de Deus. A esmola, bem compreendida, chama atenção para isso. Oração cristã é sempre saída. É êxodo rumo à terra prometida, à constituição de um Povo de Deus alicerçado na experiência de libertação, fruto da gratuidade do Pai. Não compreende essa oferta de Deus quem não fizer a experiência da gratuidade de Deus em diálogo sincero, aberto e envolvente com a totalidade de si mesmo.
Na oração, saímos para Deus e para os nossos irmãos e irmãs. Somos Povo de Deus disposto a trilhar pelo deserto, aprendendo a ser nova humanidade, que ao se encontrar consigo mesma, na vontade de se autocompreender, verá o rosto do Outro e dos outros, superando a ilusão narcísica de ver só a própria face. A oração cristã nos revela e nos converte ao fato de que somos mais que nós mesmos.
Pe. Magno Marciete do Nascimento Oliveira
membro da comissão Arquidiocesana de Catequese de BH