A vida cristã e a vida da Igreja se fundamentam nas Sagradas Escrituras, que chamamos Bíblia. Mas qual o conteúdo da Bíblia? Por que a consideramos tão central para nossa vida? Segundo o Concílio Vaticano II, “aprouve a Deus, na sua bondade e sabedoria, revelar a si mesmo e manifestar o mistério da sua vontade (Ef 1,9), mediante o qual os homens, por meio de Cristo, Verbo feito carne, no Espírito Santo, têm acesso ao Pai”. Sabemos que não somos a origem de nós mesmos. Deus, livre e amorosamente, nos criou. E por que o fez? Apenas para se dar a nós e nos fazer participar do seu mistério de amor. A criação do mundo e dos homens nada lhe acrescenta, Ele já é a plenitude do amor: Pai, Filho e Espírito Santo. Mas Ele quis, por puro dom, que outros fossem felizes com ele e criou somente para isto: introduzir outros no seu mistério eterno de amor através de seu Filho, Jesus Cristo, e do Espírito Santo.
A filosofia se pergunta: por que existe o ser (alguma coisa) e não o nada? A resposta cristã é simples: porque Deus quis. Ele nos quis para ele. E para que fôssemos dele, entrou em diálogo conosco, revelando-nos o seu mistério. Para realizar seu plano de salvação, escolheu um povo, o povo de Israel, como destinatário de sua Palavra. Antes disso, Ele já estava se revelando e as religiões mais antigas da humanidade provam que o ser humano percebia a presença de Deus e a celebrava por meio de ritos e símbolos. Desde que houve o ser humano, portanto, ele se percebeu envolvido por um mistério maior do que ele, o mistério da sua própria origem, que chamamos Deus. Mas Deus quis revelar seu plano de salvação pro meio de um povo, o povo de Israel. Ele se manifestou nos eventos históricos desse povo. Arrancou-o da escravidão do Egito, acompanhou-o através do deserto, fez com ele uma Aliança, deu-lhe uma lei, uma terra, um rei. Aquele grupo desprezado e explorado pelas grandes potências da época, Deus escolheu como seu povo.Esta escolha visava, no entanto, a humanidade toda. E os profetas anunciaram uma intervenção em vista de uma Aliança definitiva e insuperável.
Em Jesus, Deus salva e liberta a humanidade
O clímax desta história acontece em Jesus Cristo, Filho de Deus no Espírito Santo, que estava junto do Pai desde toda a eternidade e que foi enviado à humanidade como Revelador e Salvador. Deus sai de si na pessoa do Filho, cuja morte e ressurreição representam o ápice da revelação. Em Jesus, Deus salva e liberta a humanidade. Chama todos a entrar em comunhão com Ele em seu Filho Jesus, que, uma vez ressuscitado, envia, de junto do Pai, o Espírito Santo, para configurar os homens e as mulheres a Ele, fazendo-os participar de sua própria filiação divina. O que Jesus é por natureza, os homens se tornam por graça: filhos de Deus, filhos no Filho, portanto irmãos uns dos outros. Assim se cumpre o Reino de Deus que Jesus anunciou como profeta. Sua mensagem é clara: nele, por sua morte e ressurreição, todos se tornaram verdadeiros irmãos e devem viver em solidariedade ilimitada e desinteressa. Depois de Jesus, sabemos que o amor é a textura do real. Quando nos amamos, realizamos o que Deus é em si mesmo, segundo o que manifestou em seu Filho: amor incondicional. “Eu sou a vida”, diz Jesus. A realidade finca nele suas raízes. Amar desinteressadamente Deus e os irmãos resume o destino último do ser humano.
Os autores bíblicos, inspirados pelo Espírito Santo, consignaram por escrito a experiência fundamental da salvação e revelação de Deus, que começa no Antigo Testamento e termina no Novo Testamento. “Deus, que inspirou os livros de um e de outro Testamento e é seu autor, sabiamente dispôs que o Novo estivesse escondido no Velho e o Velho se tornasse claro no Novo” (DV 16). A Bíblia é inspirada, não inventada. Ela contém as etapas da história da salvação de Deus até seu cume, o mistério pascal de Cristo, com o envio do Espírito Santo. Os primeiros cristãos reconheceram nos livros sagrados o essencial de sua experiência de Deus em Cristo e os canonizaram, tornando-os a norma para a vida da Igreja e do cristão. A Igreja crê que a Bíblia transmite a verdade para nossa salvação, a Palavra que Deus nos dirigiu, instruindo-nos sobre o seu mistério e comunicando-nos a graça de poder participar dele. Neste sentido, a Bíblia não erra, mas transmite a verdade mais preciosa para o ser humano: sua vocação à comunhão com Deus em Cristo.
A leitura orante da Bíblia
Há vários métodos de estudo da Bíblia. Alguns privilegiam os autores sagrados e seus contextos; outros, os leitores, e há, ainda, os que se dedicam ao significado que o texto vai adquirindo ao longo da história da Igreja. Como a Bíblia nasceu dentro de uma tradição, só pode ser verdadeiramente compreendida dentro dessa tradição. Seu sentido só emerge quando é lida “na Igreja”. Ora, se ela nasceu dentro da tradição dos primeiros seguidores de Jesus, é neste contexto que necessita ser lida e assimilada. A referência para uma leitura correta da Bíblia se encontra, portanto, no Magistério da Igreja, os bispos com o Papa, nos estudos bíblicos feitos pelos teólogos e na vida do povo que faz hoje a experiência daquela revelação fundamental de Deus em Jesus Cristo. Só sabemos que nossa vida cristã é verdadeira se estiver de acordo com o que a Bíblia afirma. Evidentemente, o que ela afirma vai sendo atualizado ao longo da história, num processo contínuo de interpretação, que leva em consideração os problemas atuais da humanidade e dialoga com as ciências modernas.
Do ponto de vista da reflexão pessoal, a leitura orante se mostra um excelente método de leitura da Bíblia. Nele, o cristão, inspirado pelo Espírito Santo, que também inspirou a Bíblia, mesmo sem a ter estudado a fundo, pode chegar ao essencial de sua mensagem e fazer uma profunda experiência de Jesus Cristo. O Espírito conduz o orante ao mistério que está por trás das Palavras, ou seja, ao próprio mistério de Deus que se comunica em verdade egraça fazendo-nos participar de sua vida divina. O texto quer comunicar uma realidade que vai além dele mesmo: a salvação de Jesus Cristo. A Palavra de Deus quer nos introduzir no próprio mistério de Deus revelado em seu Filho. Mas o orante não descarta a interpretação que a Igreja faz da Bíblia. Só na Igreja sua oração da Bíblia ganha consistência e profundidade. E o fruto mais saboroso da leitura orante é a transformação da própria vida, que o Espírito configura sempre mais a Cristo, levando o cristão a assumir a tarefa da construção do Reino de Deus, feito de amor, paz, justiça e fraternidade.
Pe. Paulo Sérgio Carrara, CSSR