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1ª Pregação da Quaresma: O Espírito Santo nos introduz no mistério do Senhorio de Jesus

O Espírito Santo e o Senhorio de Jesus, tema da primeira pregação da Quaresma do Frei Cantalamessa

Cidade do Vaticano (RV) – Na manhã desta sexta-feira, 10 de março, o Pregador da Casa Pontifícia, Frei Raniero Cantalamessa, fez no Vaticano a primeira pregação da Quaresma intitulada “O Espírito Santo nos introduz no mistério do Senhorio de Jesus”.

Eis a reflexão na íntegra:

1. “Ele me fará testemunho”

Lendo a Oração da Coleta da Primeiro Domingo da Quaresma, me tocou este ano um detalhe. Nela, não se pede a Deus para para dar-nos a força de realizar alguma das obras clássicas deste tempo: jejum , oração, esmola; pede-se somente uma coisa: de fazer-nos “crescer no conhecimento de Cristo”. Creio que seja realmente a obra mais bela e mais agradável ao Salvador e é o objetivo com o qual gostaria de contribuir com as meditações quaresmais deste ano.

Prosseguindo a reflexão iniciada na pregação do Advento sobre o Espírito Santo que deve permear toda a vida e anúncio da Igreja (“Teologia do terceiro artigo!”), nestas meditações quaresmais nos propomos subir da terceira para a segunda parte do Creio. Em outras palavras, buscaremos ressaltar como o Espírito Santo “no introduz na verdade plena” sobre Cristo e sobre seu mistério pascal, isto é, sobre o ser e sobre o agir do Salvador.

Do agir de Cristo em sintonia com o tempo litúrgico da Quaresma, procuraremos aprofundar o papel que o Espírito Santo desenvolve na morte e na ressurreição de Cristo e,  após ele, na nossa morte e na nossa ressurreição.

A segunda parte do Creio, na sua forma completa, diz assim: “Creio em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho Unigênito de Deus, nascido do Pai antes de todos os séculos: Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado não criado, consubstancial Pai: Por Ele todas as coisas foram criadas”.

Esta parte central do Creio reflete dois estágios diferentes da fé. A frase “Creio em um só Senhor Jesus Cristo”, reflete a primeiríssima fé da Igreja, logo após a Páscoa. O que segue nesta parte do Creio: “Filho Unigênito de Deus…” reflete um estágio posterior, mais evoluído, sucessivo à controvérsia ariana e ao Concílio de Nicéia. Dediquemos a presente meditação à primeira parte – “creio em um só Senhor Jesus Cristo” – e vejamos o que o Novo Testamento nos diz sobre o Espírito Santo como autor do verdadeiro conhecimento de Cristo.

São Paulo afirma que Jesus Cristo foi estabelecido “Filho de Deus com o poder mediante o Espírito de santidade” (Rom 1,4), isto é, por obra do Espírito Santo. Chega a afirmar que “ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor, senão sob a ação do Espírito Santo” (1 Cor 12,3), isto é, graças a uma iluminação interior sua. Atribui ao Espírito Santo “a compreensão do mistério de Cristo” que foi dada a ele como a todos os santos apóstolos e profetas (cf. Ef 3, 4-5); diz que aqueles que creem serão capazes de “compreender a largura, o comprimento, a altura e a profundidade e conhecer a caridade (o amor) de Cristo que desafia todo o conhecimento” somente se forem “repletos do Espírito” (Ef 3, 16-19).

No Evangelho de João, Jesus mesmo anuncia esta obra do Paráclito em relação a eles. Ele tomará do que é seu e o anunciará aos discípulos; recordará a eles tudo aquilo que disse; os conduzirá à verdade plena sobre sua relação com o Pai e os fará testemunhas (cf. Jo 16, 7-15). Precisamente isto será, desde então, o critério para reconhecer se se trata do verdadeiro Espírito de Deus e não de outro espírito: se leva a reconhecer Jesus que veio na carne (cf. 1 Jo 4,2-3).

Alguns acreditam que a ênfase atual sobre o Espírito Santo possa colocar na sombra a obra de Cristo, como se esta fosse incompleta ou perfectível. É uma incompreensão total. O Espírito nunca diz “eu”, nunca fala em primeira pessoa, não pretende fundar uma obra própria, mas sempre faz referência a Cristo. O Espírito Santo não faz coisas novas, mas faz novas todas as coisas! Não acrescenta nada às coisas “instituídas” por Jesus, mas as vivifica e renova.

A vinda do Espírito Santo em Pentecostes traduz-se em uma repentina iluminação de todas as ações e a pessoa de Cristo. Pedro concluiu o seu discurso de Pentecostes com a solene definição, que hoje se diria “urbi et orbi”: “Que toda a casa de Israel saiba, portanto, com a maior certeza de que este Jesus que vós crucificastes, Deus o constituiu Senhor (Kyrios) e Messias” (At 2,36).

A partir daquele dia, a comunidade primitiva começou a repassar a vida de Jesus, a sua morte e a sua ressurreição, de maneira diversa; tudo pareceu claro, como se tivesse sido tirado um véu de seus olhos (cf. 2 Cor 3,16). Mesmo vivendo lado a lado com ele, sem o Espírito não tinham podido penetrar em profundidade em seu mistérios.

Hoje está em andamento uma reaproximação entre teologia ortodoxa e teologia católica sobre este tema da relação entre Cristo e o Espírito. O teólogo Johannes Zizioulas, em um encontro realizado em Bolonha em 1980, por um lado manifestava reservas sobre a eclesiologia do Concílio Vaticano II porque, segundo ele, “o Espírito Santo era introduzido na eclesiologia depois que se tinha construído o edifício da Igreja somente com material cristológico”; por outro, porém, reconhecia que também a teologia ortodoxa tinha necessidade de repensar a relação entre cristologia e pneumatologia, para não construir a eclesiologia somente sobre uma base pneumatológica. Em outras palavras, nós latinos somos estimulados a aprofundar o papel do Espírito Santo na vida interna da Igreja (que foi o que ocorreu após o Concílio), e os irmãos ortodoxos o de Cristo e da presença na Igreja na história.

2. Conhecimento objetivo e conhecimento subjetivo de Cristo

Voltemos, portanto, ao papel do Espírito Santo em relação ao conhecimento de Cristo. Delineiam-se já, no âmbito do Novo Testamento, dois tipos de conhecimento de Cristo, ou dois âmbitos onde o Espírito desenvolve a sua ação. Existe um conhecimento objetivo de Cristo, de seu ser, de seu mistério e de sua pessoa, e existe um conhecimento mais subjetivo, funcional e interior, que tem por objeto o que Jesus “faz por mim”, mais do que aquilo que ele “é em si mesmo”.

Em Paulo prevalece ainda o interesse pelo conhecimento daquilo que Cristo fez por nós, pela obra de Cristo e em particular o seu mistério pascal; já em João prevalece o interesse por aquilo que Cristo é: o “Logos” eterno que estava junto de Deus e veio na carne, que é “um com o Pai” (Jo 10,30).

Para João, Cristo é sobretudo o Revelador, para Paulo é sobretudo o Salvador. Mas é somente nos fatos sucessivos que estas duas tendências ficarão evidentes. Fazemos uma breve referência a elas, porque isto nos ajudará a compreender qual é o dom que o Espírito Santo faz, neste campo, na Igreja hoje.

Na época patrística, o Espírito Santo aparece sobretudo como garante da tradição apostólica em torno a Jesus, contra as inovações dos gnósticos. À Igreja – afirma Santo Irineu – foi confiado o Dom de Deus que é o Espírito; dele não são partícipes os que se separam da verdade pregada pela Igreja com suas falsas doutrinas. As Igrejas apostólicas – argumenta Tertuliano – não podem ter errado ao pregar a verdade. Pensar o contrário, significaria que “o Espírito Santo, para esta finalidade enviado por Cristo impetrado pelo Pai como mestre da verdade, ele que é o vigário de Cristo e o seu administrador, teria falhado no cumprimento de sua missão”.

Na época das grandes controvérsias dogmáticas, o Espírito Santo é visto como o custódio da ortodoxia cristológica. Nos concílios,  a Igreja tem a firme certeza de ser “inspirada” pelo Espírito ao formular a verdade sobre as duas naturezas de Cristo, a unidade de sua pessoa, a totalidade de sua humanidade. O acento, portanto, é claramente sobre o conhecimento objetivo, dogmático, eclesial de Cristo.

Esta tendência predominou, na teologia, até a Reforma. Com uma diferença, porém. Os dogmas que no momento de serem formulados eram questões vitais, fruto de viva participação, de toda a Igreja, uma vez sancionados  e transmitidos, tendem a perder pungência, a tornarem-se formais. “Duas naturezas, uma pessoa”, torna-se uma fórmula bela e acabada, mais do que o ponto de chegada de um longo e sofrido processo. Certamente não faltaram, em todo este tempo, esplêndidas experiências de um conhecimento de Cristo íntimo, pessoal, repleto de fervorosa devoção a Cristo, como aquelas de São Bernardo e de São Francisco de Assis; mas isso não influenciava muito na teologia. Também hoje disso se fala na história da espiritualidade, não naquela da teologia.

Os reformadores protestantes invertem esta situação e dizem: “Conhecer Cristo significa reconhecer os seus benefícios, não pesquisar as suas naturezas e os modos de encarnação”. O Cristo “para mim” aparece em primeiro plano. Ao conhecimento objetivo, dogmático, se opõe um conhecimento subjetivo, íntimo; ao testemunho externo da Igreja e das próprias Escrituras sobre Jesus, se antepõe o “testemunho interno” que o Espírito Santo dá a Jesus no coração de cada cristão.

Quando, mais tarde, esta novidade teológica tenderá, ela mesma, no protestantismo oficial, a transformar-se em “morta ortodoxia”, surgirão periodicamente movimentos, como o Pietismo no âmbito luterano e o Metodismo no anglicano, para trazê-la novamente à vida. O ápice do conhecimento de Cristo coincide, nestes âmbitos, com o momento em que, movido pelo Espírito Santo, o cristão toma conhecimento de que Jesus morreu “por ele”, precisamente por ele, e o reconhece como seu Salvador pessoal:

“Pela primeira vez de todo o coração eu acreditei;

acreditei de fé divina,

e no Espírito Santo encontrei a força

de chamar meu o Salvador.

Senti o sangue da expiação de meu Senhor

diretamente derramado em minha alma”.

Completemos este rápido olhar para a história, acenando a uma terceira fase na maneira de perceber a relação entre o Espírito Santo e o conhecimento de Cristo, aquela que caracterizou os séculos do Iluminismo, do qual nós somos herdeiros diretos. Volta a predominar um conhecimento objetivo, separado; não mais, porém, do tipo ontológico, como na época antiga, mas histórico.

Em outras palavras, não interessa saber quem é  Jesus Cristo (a pré-existência, as naturezas, a pessoa), mas quem ele foi na realidade da história. É a época da busca do assim chamado “Jesus histórico”!

Nesta fase, o Espírito Santo não desempenha mais nenhum papel no conhecimento de Cristo; está totalmente ausente. O “testemunho interno” do Espírito Santo passa a ser identificado com a razão e com o espírito humano. O “testemunho externo” é o único importante, mas com ele não se entende mais o testemunho apostólico da Igreja, mas unicamente aquele da história, comprovado com os diversos métodos críticos. O pressuposto comum deste esforço era de que para encontrar o verdadeiro Jesus, é necessário buscar fora da Igreja, separá-lo “das vendas do dogma eclesiástico”.

Sabemos qual foi o êxito de toda esta busca do Jesus histórico: o fracasso, o que não significa que não tenha trazido muitos frutos positivos. Persiste ainda, a este respeito, um equívoco de fundo. Jesus Cristo – e depois dele outros homens, como São Francisco de Assis – simplesmente não vive na história, mas criou uma história, e vive agora na história que criou, como um som na onde que provocou. O esforço obstinado dos historiadores racionalistas parece aquele de separá-lo da história que criou, para restituí-lo àquela comum e universal, como se assim fosse possível perceber melhor o som na sua originalidade, separando-o da onda que o transporta. A história que Jesus iniciou, ou a onda que emitiu, é a fé da Igreja animada pelo Espírito Santo e é somente por meio dela que se remete à sua fonte.

Não está excluída com isto a legitimidade também da normal busca histórica sobre ele, mas esta deveria ser mais consciente de seu limite e reconhecer que não exaure tudo o que se pode saber de Cristo. Como o ato mais nobre da razão é reconhecer que existe algo que a supera, assim o ato mais honesto do historiador é reconhecer que existe algo que não se pode alcançar somente com a história.

3. O sublime conhecimento de Cristo

Ao final de sua obra clássica sobre a história da exegese cristã, Henri de Lubac chegava a uma conclusão pessimista. Faltavam a nós, modernos – dizia – as condições para poder ressuscitar uma leitura espiritual como aquela dos Padres; nos falta aquela fé plena de ímpeto, aquele senso da plenitude e da unidade das Escrituras que eles tinham. Querer imitar hoje a audácia deles em ler a Bíblia, seria um expor-se quase que à profanação, porque nos falta o espírito do qual brotavam aquelas coisas. Todavia ele não fechava totalmente a porta à esperança; em outra obra sua, disse que “caso se queira reencontrar algo daquilo que foi, nos primeiro séculos da Igreja, a interpretação espiritual das Escrituras, é necessário reproduzir, antes de tudo, um movimento espiritual”.

Aquilo que de Lubac observava a propósito da inteligência espiritual das Escrituras, se aplica, com mais forte razão, ao conhecimento espiritual de Cristo. Não basta escrever novos e mais atualizados tratados de pneumatologia. Se falta o suporte de uma vivida experiência do Espírito, análoga àquela que acompanhou, no século IV, a primeira elaboração da teologia do Espírito, o que se disser permanecerá sempre ao externo do verdadeiro problema. Nos faltam as condições necessárias para elevar-nos ao plano em que opera o Paráclito: o ímpeto, a audácia e aquela “sóbria embriaguez do Espírito”, do qual falam quase todos os autores daquele século.

Ora, precisamente aqui realizou-se a grande novidade desejada pelo Padre de Lubac. No século passado surgiu e se difundiu sempre mais um “movimento espiritual” que criou as bases para uma renovação da pneumatologia a partir da experiência do Espírito e de seus carismas. Falo do fenômeno pentecostal e carismático. Em seus primeiros cinquenta anos de vida, este movimento, nascido (como o Pietismo e o Metodismo recordados acima) como reação à tendência racionalista e liberal da teologia ignorou deliberadamente a teologia e foi, por sua vez, ignorado ( e até mesmo ridicularizado!) pela teologia.

Quando , porém, por volta da metade do século passado, ele penetrou nas Igrejas tradicionais, na posse de uma vasta instrumentação teológica e recebeu uma acolhida de fundo pelas respectivas hierarquias, a teologia não pode mais ignorá-lo. No livro intitulado “A redescoberta do Espírito. Experiência e teologia do Espírito Santo”, os mais conhecidos teólogos do momento, católicos e protestantes, examinaram o significado do fenômeno pentecostal e carismático para a renovação da doutrina do Espírito Santo.

Tudo isto nos interessa, neste momento, somente do ponto de vista do conhecimento de Cristo. Qual conhecimento de Cristo começa a surgir nesta nova atmosfera espiritual e teológica? O fato mais significativo não é a descoberta de novas perspectivas e novas metodologias sugeridas pela filosofia do momento (estruturalismo, análises linguísticas, etc), mas é a redescoberta de um dado bíblico elementar: que Jesus Cristo é o Senhor! O Senhorio de Cristo é um mundo novo no qual se entra somente “pela ação do Espírito Santo”.

São Paulo fala de um conhecimento de Cristo de grau “superior”, ou, até mesmo, “sublime”, que consiste em conhecê-lo e proclamá-lo precisamente como “Senhor” (cf. Filip 3,8). É a proclamação que, unida à fé na ressurreição de Cristo, faz de uma pessoa alguém salvo: “Se com a tua boca proclamares: ‘Jesus é o Senhor!’, e com o teu coração creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo” (Rm 10,9). Ora, este conhecimento é possível somente pelo Espírito Santo: “Ninguém pode dizer: ‘Jesus é o Senhor!’, senão sob a ação do Espírito Santo” (1 Cor 12,3). Cada um, naturalmente, pode dizer com os lábios estas palavras, mesmo sem o Espírito Santo, mas não seria então a coisa grandiosa que recém dissemos; não faria dele alguém salvo.

O que existe de especial nesta afirmação, para torná-la assim tão decisiva? Pode-se explicar isto sob diversos pontos de vista, objetivos ou subjetivos. A força objetiva da  frase: “Jesus é o Senhor” está no fato de que ela torna presente a história e em particular o mistério pascal. É a conclusão que brota de dois acontecimentos: Cristo morreu pelos nossos pecados; ressuscitou para a nossa justificação; por isto é o Senhor. “Para isso, de fato, é que morreu Cristo e retomou a vida: para ser o Senhor tanto dos mortos como dos vivos” (Rm 14,9).  Os acontecimentos que a prepararam como que se fecharam nesta conclusão e nela se tornam presentes e atuantes. Neste caso a palavra é realmente “a casa do ser”. A proclamação: “Jesus é o Senhor” é a semente da qual desenvolveu-se todo o querigma e o anúncio cristão sucessivo.

Do ponto de vista subjetivo  – isto é, daquilo que depende de nós – a força daquela proclamação está no fato de que ela supõe também uma decisão. Quem a pronuncia decide o sentido da sua vida. É como se dissesse: “Tu és o meu Senhor; eu me submeto a ti, eu te reconheço livremente como o meu salvador, o meu senhor, o meu mestre, aquele que tem todos os direitos sobre mim”. Eu pertenço a ti mais do que a mim mesmo, porque tu me compraste por um alto preço (cf 1 Cor 6,19 ss).

O aspecto de decisão inerente à proclamação de Jesus “Senhor” assume hoje uma atualidade particular. Alguns acreditam que seja possível, e mesmo necessário, renunciar à tese da unicidade de Cristo, para favorecer o diálogo entre as várias religiões. Ora, proclamar Jesus “Senhor” significa precisamente proclamar a sua unicidade. Não por nada,  a fórmula nos faz dizer: “Creio em um só Senhor Jesus Cristo”. São Paulo escreve:

“Pretende-se, é verdade, que existam outros desuses, quer no céu, quer na terra (e há um bom número desses deuses e senhores). Mas para nós, há um só Deus, o Pai, do qual procedem todas as coisas e para o qual existimos, e um só Senhor, Jesus Cristo, por quem todas as coisas existem e nós também” (1 Cor 8, 5-6).

O apóstolo escrevia estas palavras no momento em que a fé cristã surgia, pequena e recém nascida, em um mundo dominado por cultos e religiões poderosas e prestigiosas. A coragem que é necessária hoje para acreditar que Jesus é “o único Senhor” é nada em relação àquilo que acontecia então. Mas o “poder do Espírito” não é concedido se não a quem proclama Jesus Senhor, nesta acepção forte das origens. É um dado de experiência. Somente depois que um teólogo ou um anunciador tenha decidido apostar tudo em Jesus Cristo “único Senhor”, mas tudo mesmo, mesmo com o risco de ser “expulso da sinagoga”, somente então faz a experiência de uma certeza e de um poder novos em sua vida.

4. Do Jesus “personagem” ao Jesus “pessoa”

Esta redescoberta luminosa de Jesus como Senhor é, dizia, a novidade e a graça que Deus está concedendo, nos nossos tempos, à sua Igreja. Eu me dei conta de que quando interrogava a Tradição sobre todos os outros temas e palavras da Escritura, os testemunhos dos Padres povoavam a mente; quando tentei interrogá-la sobre este ponto, esta restava quase muda. Já no século III, o título de Senhor não era mais compreendido em seu significado querigmático; fora do âmbito religioso judaico, ele não era assim mais tão significativo para expressar suficientemente a unicidade de Cristo. Orígenes considera “Senhor” (Kyrios) o título precisamente de quem está ainda na fase do temor; a isto corresponde, segundo ele, o título de “servo”, enquanto a “Mestre” corresponde o de “discípulo” e de amigo.

Se continua certamente a falar de Jesus “Senhor”, mas isto tornou-se um nome de Cristo como os outros, antes, mais frequentemente um dos elementos do nome completo de Cristo: “Nosso Senhor Jesus Cristo”. Mas uma coisa é dizer: “Nosso Senhor Jesus Cristo” e outra é dizer “Jesus Cristo é o nosso Senhor!”. Um indicador desta mudança é o modo como foi traduzido na Vulgata o texto de Filipenses 2,11: “Omnis lingua confiteatur quia Dominus noster Iesus Christus in gloria est Dei Patris”, “E toda língua confesse, para a glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é o Senhor”. Neste modo, que é aquela das traduções atuais, não se pronuncia somente um nome, mas se faz uma profissão de fé.

Onde está, em tudo isto, o salto qualitativo que o Espírito Santo no faz dar no conhecimento de Cristo? Está no fato de que a proclamação de Jesus Senhor é a porta que introduz ao conhecimento de Cristo ressuscitado e vivo! Não mais um Cristo personagem, mas pessoa; não mais um conjunto de teses, de dogmas (e de correspondentes heresias), não mais somente objeto de culto e de memória – mesmo aquela litúrgica e eucarística – mas pessoa viva e sempre presente no Espírito.

Este conhecimento espiritual e existencial de Jesus como Senhor, não leva a negligenciar o conhecimento objetivo, dogmático e eclesial de Cristo, mas o revitaliza. Graças ao Espírito Santo, diz Santo Irineu, a verdade revelada “como um depósito precioso contido em um vaso de valor, rejuvenesce e faz sempre rejuvenescer também o vaso que a contém”.

A um destes dogmas, aquele que constitui a segunda parte da fórmula do Creio: “gerado e não criado, da mesma substância do Pai”, dedicaremos, se Deus quiser, a nossa próxima meditação.

Não saberia indicar uma resolução prática a ser tomada ao final destas reflexões, melhor do que aquela que se lê no início da Exortação Apostólica do Papa Francisco Evangelii gaudium: “Convido a todos os cristãos, em qualquer lugar e situação em que se encontrem, a renovar hoje mesmo o seu encontro pessoal com Jesus Cristo ou, ao menos, a tomar a decisão de deixar-se encontrar por Ele, de buscá-lo a cada dia sem cessar. Não existe motivo pelo qual alguém possa pensar que este convite não seja para ele”.



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