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[Artigo] O Senhor esteja convosco – Padre Márcio Pimentel, Secretariado Arquidiocesano de Liturgia de BH

O ponto culminante da Liturgia da Palavra é a proclamação do Evangelho. A gestualidade de toda a assembleia denota isso: todos, de pé, se voltam para o Livro dos Evangelhos e todos entoam o Aleluia; à nomeação do Evangelho a ser proclamado todos se persignam; o Livro é incensado e ao final da proclamação beijado. Os ministros trajam vestes que não visam apenas ao decoro, mas comunicam uma presença que os reveste. Temos, assim, mais do que uma leitura ou proclamação pública, mas o desenho de uma ritualidade que confere vida à Escritura. Poiesis e Aesthesis se associam e geram para nós e em nós – hoje – o Verbo da Vida.

 

… Ele está no meio de nós!

A noção de “proclamação” que possuímos pode confundir-se com a de “leitura pública”. É bem verdade que as leituras bíblicas na Missa e nas demais celebrações litúrgicas da Igreja podem ser compreendidas por esse viés. Mas não apenas por ele. Segundo Gino Stefani o som é um “sacramentum” porque “a liturgia é uma ação sonora. E como tudo aquilo que na liturgia é percebido pelos sentidos, o som é também sinal e instrumento do Mistério.” Nesse sentido, a proclamação litúrgica supera o caráter meramente informativo, pois o que se transmite por ela assume uma forma diante da assembleia, torna-se existente. A palavra proclamada cria o que anuncia.

A proclamação litúrgica chama à existência aqui e agora. Existir consiste em mostrar-se factualmente, é sinônimo de “vir à tona”, emergir. São João em sua primeira carta alude bem a este conceito que buscamos elaborar quando diz:

O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e o que nossas mãos apalparam do Verbo da Vida – porque a vida manifestou-se: nós a vimos e lhe damos testemunho. Anunciamos-vos a Vida Eterna que estava voltada para o Pai e que nos apareceu. O que vimos e ouvimos vo-lo anunciamos para que estejais também em comunhão conosco.

Para compreender bem essa passagem, é importante termos em mente o significado da leitura pública na tradição judaica, do qual herdamos tanto o conceito de Palavra quanto de Presença de Deus que se dá pela frequência às Escrituras.

Semanalmente, os judeus orientam sua vida pelo estudo da Torá. Para cada semana é preparada uma “porção” (parashat) que é posta à disposição dos ouvintes pela proclamação no Shabat. Os judeus compreendem que pela “sintonia e receptividade nos encontros com a Torá recriamos a experiência de ‘ouvir’ a Voz divina’”. Era assim na época de Jesus e, certamente, como bom judeu da Galileia, frequentando sobretudo as sinagogas de sua região, compôs e conduziu sua vida a partir deste encontro semanal com o ‘Meste da Torá’ a quem, carinhosamente e com toda autoridade chama de Abba – Papaizinho.

O Talmud ensina que “quando o Povo de Israel entra em sinagogas e casas de estudo (batei midrashot) e respondem durante a reza ao Kadish (…), o Santo, Bendito seja, acena sua cabeça e diz: ‘ Bem aventurado é o rei que é louvado assim em sua morada’”. Assim, o que se dá mediante a proclamação tanto das orações quanto das Escrituras no culto (sinagoga) e também pelo estudo do sentido da Bíblia na Casa de Estudos (batei midrashot) é uma relação entre o Pai (Deus) e seus filhos (Povo de Israel). A Ética dos Pais (Pirkei Avot) é bem clara neste ponto quando dita: “Quando dois homens sentam juntos e pronunciam palavras da Torá, a Shekiná pousa entre eles.”

A tradição judaica legou aos cristãos esta lógica que se estabelece entre a Sagrada Escritura e a Presença do Senhor. O Evangelho de Mateus, para além de recolher a sabedoria dos Mestres de Israel no que concerne à presença do Senhor enquanto a comunidade se dedica ao contato permanente com a Escritura, a aplica em relação à palavra e à pessoa de Jesus, conforme se pode verificar em Mt 18,20. Mas, não só.

Sabe-se também que esta presença divina ser faz notar no mundo não apenas pela proclamação dos textos da Escritura, mas também nos atos humanos de justiça e compaixão. Mateus também enfatiza este aspecto ao relacionar as ações misericordiosas para com os pequenos e pobres, como sendo realizadas ao próprio Jesus: “Serão reunidas em sua presença (do Filho do Homem) todas as nações (…) e dirá: ‘Vinde benditos de meu Pai, recebei por herança o Reino preparado para vós desde a fundação do mundo. Pois tive fome e me deste de comer (…) Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos (…)? Cada vez que o fizestes a um desses meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes.”

Pode-se assim dizer que a presença do Verbo da Vida se dá sacramentalmente tanto quando da proclamação das Escrituras no culto, quanto de seu estudo (derivado e ligado ao culto) quanto da realização dos gestos de compaixão. A diferença aqui é a identificação tanto da Torá (Escritura) quanto da Presença de Deus (Shekiná) como sendo relativas à palavra e gestos de Jesus. Não é difícil perceber os elementos de continuidade mas também de ruptura que a comunidade cristã opera em relação aos irmãos mais velhos na fé – os judeus: o lugar que é da Torá é transferida para a pessoa de Jesus, sua palavra e seu gesto. A presença que é gerada quando esta palavra é recordada pelos fieis é a presença de Jesus como evidência da onipresença divina no mundo.

Proclamação da Boa Nova de Jesus Cristo…

O Concílio Ecumênico Vaticano II, na Constituição Conciliar sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium nos fala com todas as letras o significado da sacramentalidade da Palavra:

Para realizar tão grande obra, Cristo está sempre presente na sua Igreja e especialmente nas ações litúrgicas. Está presente no sacrifício da Missa (…) nos sacramentos, de tal modo que, quando alguém batiza, é o próprio Cristo quem batiza. Ele está presente na sua palavra, pois é ele quem fala quando na Igreja se lêem as Sagradas Escrituras. Está presente, por fim, quando a Igreja ora e salmodia, ele que prometeu: “onde se acharem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu nomeio deles (Mt 18,20).

A reforma litúrgica seguida ao Concílio tratou de manter muito vívida esta compreensão teológica acerca da presença de Jesus em relação as celebrações da Igreja. De modo muito especial, a reforma trouxe um novo alento à Liturgia da Palavra recuperando-lhe aquela dinâmica ritual outrora obscurecida pela inflação de elementos devocionais e pelo esquecimento da sacramentalidade da Palavra. O Concílio nos quis fazer perceber que “guardar a Palavra” corresponde a “guardar a Prenença” porque não há presença do Senhor sem a força e eficácia da Palavra Divina.

Podemos exemplificar de maneira muito clara em que sentido se dá a sacramentalidade da Palavra em conexão com a atividade celebrativa (sacramental, portanto) com as palavras de Agostinho:

Vós estais limpos graças à palavra que vos disse. Porque não afirmou: “Estais limpos graças ao batismo em que forstes lavados”, e afirmou: graças à palavra que vos disse? Porque memso na água é a palavra que purifica.
Suprime a palavra, e a água é simplesmente água. Mas, se juntamos a palavra ao elemento, há sacramento, que é também ele como que uma palavra visível.

O que estais a ver, caríssimos, sobre a mesa do Senhor, é pão e vinho; mas quando se llhes junta a palavra, este pão e este vinho tornam-se o Corpo e o Sangue do Verbo… O Senhor, que sofreu por nós confiou-nos, neste sacramento, o seu Corpo e Sangue em que nos transformou também nós mesmos.

Ao juntar-se a palavra, realiza-se o Corpo e o Sangue de Cristo. Retira-se a palavra, é pão e vinho; acrescenta-se a palavra e já é outra coisa. Essa coisa o que é? Corpo e Sangue de Cristo. Tira, pois, a palavra, e torna-se sacramento. A isto respondes Amem”.

Também Ambrósio de Milão diz com exatidão:

É a palavra de Cristo que produz esse sacramento. Que palavra de Cristo é essa? Pois bem, é aquela pela qual tudo foi feito. O Senhor mandou, o céu foi feito. O Senhor mandou, a terra foi feita. O Senhor mandou, os mares foram feitos. O Senhor mandou, todas as criaturas foram feitas. Estás portanto a ver como a Palavra de Cristo é eficaz (…)

Escuta, portanto, como a Palavra de Cristo costuma mudar todas as criaturas, e muda, quando Ele o quer, as leis da natureza.

Palavra da Salvação

Atualmente, talvez seja preferível pensar na celebração eucarística como se dando ao redor de apenas uma mesa. Isso para que fique claro que a celebração inteira é uma extensa liturgia da Palavra. É importante discernirmos que é a Palavra que “em todas as suas formas, que têm a capacidade de alimentar, com todas as suas texturas, é ela o centro da liturgia e também o seu princípio.”

Os ritos e preces da Liturgia são a possibilidade encarnatória do Verbo. A Palavra de Jesus e seus gestos ganham visibilidade mediante as ações simbólicossacramentais que constituem as celebrações. Nesse sentido, a Liturgia (toda ela e não apenas a “Liturgia da Palavra”) é um grande banquete no qual “comemos a Palavra do Pai” como dizia Atanásio de Alexandria. Mas não só comemos, como nos deixamos perfumar, ungir, tocar… palavra que narramos quando arrependidos retomamos as rédeas da vida segundo o Evangelho, que testemunhamamos ao confessar nossas faltas. Palavra que cantamos quando nossos lábios são adoçados com o mel das salmodias, afastando o amargor de uma vida auto-referencial, e que aponta constantemente para a Vida do Verbo nós. Verbo que se ouve, que se vê e que se pode apalpar.

Como verificar em nossas Assembleias essa “carnalidade” da Palavra, o que lhe confere uma dimensão estética, isto é, que pode ser apropriada por nossos sentidos? É a palavra de Cristo que nossos olhos bebem quando vislumbramos o Evangeliário erguido e processionalmente levado até o “monte da transfiguração” que é o Ambão? São as vestes dos ministros a tradução em texturas e coloridos daquela luminosidade da Vida do Verbo que, pelo Batismo, fomos revestidos? Os gestos sonoros que compõem a musicalidade da palavra publicamente dirigida aos fieis revela aquele timbre eternamente escondido do Pai que Jesus nos permitiu ouvir na autoridade e firmeza de sua voz?

É preciso, com urgência, avaliarmos o quanto a chamada “Liturgia da Palavra” faz a assembleia ver o Verbo ou se mais aparece quem preside, quem lê, quem canta e salmodia. Apenas no silêncio dos ministros o Verbo pode ecoar. Enquanto fomos ruidosos e chamarmos a atenção mais para nós do que para o Tesouro que portamos no barro que somos, estaremos muito mais próximos da auto-celebração do que da Liturgia conforme o Evangelho.

Há uma “Agadot” que pode nos ajudar a concluir bem nossas considerações sobre a sacramentalidade da Palavra. Narra-se que Moisés subiu ao Céu para receber os mandamentos de Deus e que os anjos começaram a se perguntar o que “um mortal nascido de mulher” estava fazendo ali. Deus respondeu que Moisés ascendeu ao Céu para receber a Torá e levá-la para Israel. Diz-se que os anjos ficaram aflitos porque a Torá – o grande Tesouro de Deus – seria entregue à humanidade. Como Deus poderia conceder a glória aos seres humanos? Deus mandou Moisés responder, e este falou: “Vocês estiveram no Egito? Vocês foram escravos do Faraó? Porque vocês precisam da Torá? (…) A quem a Torá deve advertir? Vocês, que estão no Céu, ou a Israel que está destinado a viver entre povos idólatras? (…) Vocês tem algum impulso maligno contra os quais a Torá deve adverti-los?” Depois Moisés desceu da montanha. Foi recebido com entusiasmo. Nem se importaram de ouvir primeiro o seu conteúdo, já se comprometeram em cumprí-lo, pois estavam desejosos de aceitar e desfrutar da presença divina (Shekiná) em seu meio. Isso ao contrário das outras nações que ao serem interpeladas por Deus e lhes foi proposta a Torá, queriam antes saber seu conteúdo. O Rabi Elazar comentou sobre isso dizendo que Israel sabe que antes de escutar é preciso se comprometer. Primeiro eles realizam a Palavra, despois, somente depois, a Escutam.

Percebamos que Moisés subiu a Montanha, segundo as Escrituras, para receber de Deus a Torá, sua Palavra, a garantia de permaneceria um Povo livre, sempre pronto para desfrutar da Aliança. A “Agadot”, no entanto, narra a subida de Moisés na Montanha como uma ascensão ao Céu. Um ser humano adentra o mundo que há de vir e quando desce do Céu (a Montanha) entrega aos seus irmãos o mapa que garantirá a chegada no destino previsto pelo Criador. E o povo que estava embaixo aguardando não preocupou-se em “ouvir” o que Moisés tinha para contar; certamente porque a Palavra lhes saltava à vista na face de Moisés. O Céu havia descido com Ele. E eles contemplaram sua glória. A glória da Palavra. Moisés tinha se tornado como que “sacramento” da Torá.

Escutando o Evangelho de João afirmamos que o perfeito sacramento da Palavra do Pai é Cristo. Embora Moisés tenha oferecido ao povo a Torá e este tenha divisado em seu rosto a glória de Deus, nada se compara a Jesus, o “Nosso Moisés” , Torá feito carne, é Ele mesmo, o Ensinamento que Deus quis dar ao mundo para que, junto com Ele, adentrasse o Céu.

Glória a Vós Senhor

C. S. Lewis comenta sobre a mudança na ordem das coisas que Cristo Jesus realiza a mando de seu Pai da seguinte forma:

Então, que diferença ele fez (Cristo) para toda a raça humana? Foi simplesmente isso: o processo de se tornar Filho de Deus, de passar de algo criado para algo gerado, de transcender da vida biológica temporária para a vida espiritual e eterna, foi feito por nós. A humanidade já está “salva” em princípio. Cada um de nós tem que se apropriar dessa salvação. Porém, a parte realmente difícil que não teríamos condições de fazer foi feita por nós (…). Se apenas nos entregarmos àquele “homem” em que ela estava completamente presente e que, embora sendo Deus, também era um homem como os outros, ele a fará surgir em nós e por nós. Lembrem-se o que eu disse sobre o “bom contágio”. Alguém da nossa própria raça tem essa nova vida: se chegarmos perto dele, seremos contagiados.

Uma vez que a celebração litúrgica nos dá acesso a essa vida, pondo-nos em contato com o Senhor pela via simbólicossacramental dos Ritos, faz-se mister nos perguntar como nos apropriamos existencialmente desta experiência mística e mistérica. Realizamo-nos no mundo como “palavra encarnada” sendo gerados por Deus? Ou, neste casamento entre “palavra” e “elemento” – na perspectiva agostiniana – abrimos mão da palavra e ficamos somente com nós mesmos? A sacramentalidade permanece apenas uma categoria litúrgico-celebrativa e não adentra o nosso mundo como um acontecimento litúrgico-existencial? Quais os indícios de nossa transformação (transfiguração) de criaturas a filhos e filhas, segundo a Palavra do Senhor?

Padre Márcio Pimentel
Especialista em Liturgia pela PUC-SP e mestrando em Teologia
na Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (Faje / Capes)
Pároco da Paróquia São Sebastião e São Vicente



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