Você está em:

[Artigo] A fé no contexto virtual (2) – Padre Márcio Pimentel, Secretariado Arquidiocesano de Liturgia de BH

Eperiência religiosa cristã e mídias sociais

A mediação da fé

A experiência religiosa – que para um cristão deve coincidir com o exercício da fé – não é incompatível com as mídias digitais. A questão é discernirmos até que ponto vai essa compatibilidade no exercício da fé.

Para respondermos satisfatoriamente, é preciso considerarmos que a fé é já um fenômeno mediado. Neste sentido, é necessário discernir a diferença que há entre a mediação da fé e a “mediação” exercida pelas mídias digitais. Isto é importante porque em geral confundimos mediação com instrumento. As mídias digitais estão muito mais para “instrumento” do que para “mediação” propriamente dita. A mídia é sobretudo “meio” para um fim; a finalidade está aquém do “meio”, da “mídia”. Ela é inter-media, está entre dois pólos e não pertence a quaisquer dos dois. A mediação – ao menos como a concebemos no âmbito da antropologia e da teologia é outra coisa. A mediação integra o evento e não é mera ‘ponte”. A mediação não é um “meio” para alcançar um fim que lhe é externo. A questão mais complexa e significativa, portanto, na relação entre fé e mídias digitais, não é o fato de tais instrumentos para a comunicação se configurarem aparato tecnológico. A arte é também um tipo de “techné”, um artifício para o ser humano exprimir-se e experimentar a si mesmo e sua relação com o mundo, com os outros, com Deus. A pergunta com a qual abrimos o artigo se desdobra: até que ponto as mídias digitais podem colaborar na mediação da fé?

A fé não se reduz a um conjunto de informações a transmitir, uma doutrina na qual crer ou verdades a se publicar. A fé é um encontro interpessoal a realizar-se, um ato de comunhão. As Escrituras nas versões “originais” do hebraico, grego e latim empregam os termos ’emunah, pisteuo e fides para falar da relação de confiança entre duas figuras: Deus e o povo. Em português traduzimos estes termos por “fé”. Na Bíblia e na Tradição cristãs, o significado de pisteuo e fides dependem de ‘emunah cuja raiz está relacionada à ação de “firmar”, “fixar”, “fincar”. A noção de solidez está na base do termo. ‘Emunah significaria em português “estabelecer uma relação firme” com alguém, daí o termo , que deriva etimologicamente de fides e que está também presente no substantivo “confiança” (confidentia). O mais interessante nisto tudo é que tanto o termo latino “fides” quanto o grego “pisteuo” tem no antigo sânscrito o sentido de “criar vínculo”. A fé é um relação estável, firme, confiante em Deus. Uma relação que a Bíblia hebraica chama de “aliança” (berit).

Olhando as coisas por esta perspectiva, o conceito de fé como submissão da inteligência e da vontade do ser humano à Deus como resposta à revelação que Ele faz de si mesmo (cf. Cat. Ig. Catolica 143) é apenas uma parte do significado. A fé não é só a resposta que o ser humano dá a Deus, mas é a própria relação que Deus estabelece com ele. Tanto a proposta divina quanto a resposta humana na relação de aliança integram o ato de fé. Se quisermos, podemos substituir “fé” por “fidelidade” porque a “fé” é a ação pela qual o parceiro divino e o parceiro humano exercitam uma confiança mútua. A fé é o exercício da fidelidade entre dois parceiros em aliança. A fé é uma ação que os mantem firmemente unidos, em comunhão. É uma ação e não apenas a adequação da razão a uma verdade, por exemplo, que Deus existe, que Jesus é Deus, etc., isto é, uma “crença”.

A fé é em si mesma uma mediação que também se apresenta fenomenicamente mediada, segundo os parâmetros do cristianismo de matriz católica. Não existe relação direta ou imediata com Deus seja da parte dele, seja da nossa. O nosso vínculo com Deus depende de mediações. A mais importante e que é fonte de todas as outras é uma pessoa humana chamada Jesus de Nazaré. Deus o fez corpo (cf. Hb 10,10) para que pudéssemos ter acesso a Ele, para que pudéssemos ser encontrados e encontrá-lo e entrarmos em comunhão. O fez “corpo” porque entre os humanos só existe experiência de encontro graças a esta mediação que é, paradoxalmente, imediata. Quer dizer que entre duas pessoas que se encontram, dois corpos que se comunicam, o contato é direto, imediato; no entanto, a história, os desejos, as frustações, os afetos, as emoções são comunicadas “através” da corporeidade. O corpo é mediação-imediata (sic!) porque não é uma coisa que nós possuímos e usamos; o corpo somos nós mesmos acontecendo, vindo à existência em um jogo de interações que é o face-a-face. O que é a fé senão uma busca-encontro da face de Deus? (Cf. Sl 41)

 

Padre Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese
de Belo Horizonte, membro do Secretariado
Arquidiocesano de Liturgia, doutorando em Liturgia
Pastoral pelo Instituto de Liturgia Pastoral da
Abadia de Santa Justina em Pádova-Itália



Novidades do Instagram
Últimos Posts
Siga-nos no Instagram
Ícone Arquidiocese de BH