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[Artigo] Quando Pedro disse “não” (2) – Padre Márcio Pimentel, Secretariado Arquidiocesano de Liturgia de Belo Horizonte

Impostação epistemológica

Antes de tratar do que chamaremos de “crítica ritual”, que é um trabalho não apenas do antropólogo Ronald Grimes – que mencionamos na primeira parte deste artigo publicada na edição 375 do Jornal Opinião e Notícias -, mas também do liturgista, é fundamental abordar o tema do modelo epistemológico a ser usado pelo estudioso do fenômeno. Será o paradigma epistemológico a fornecer os critérios para uma efetiva e eficiente avaliação da performance ritual. A crítica ritual se desenvolve como procedimento de avaliação da prática ritual que sabe visualizar analiticamente o fenômeno de falimento do rito ou de alguns de seus elementos (infelicitous performance) combinado ao estudo da competência ritual do sujeito que celebra. O desafio consta da identificação de um percurso metodológico que respeite a dinâmica intersubjetiva e a natureza performática do rito. Para isso, exige-se a escolha ou a composição de um modelo de compreensão (epistemologia) que dê sustentação a este tipo de impostação fenomenológica do evento litúrgico.

A liturgia não está nos livros, os ritos não podem ser avaliados apenas a partir do programa que encontramos nos sacramentários. O Ordo funciona como um mapa, como um roteiro, mas não é a celebração enquanto evento. Certamente, o programa ritual deve ser levado em consideração, uma vez que condensa de forma cifrada (linguagem descritiva, código escrito) a tradição que deve ser traduzida em ação por parte de atores vivos. O modelo epistemológico assumido não pode desconsiderar que o rito só existe à medida que realiza (performance). Um procedimento como a liturgia compara de Baumstark, por exemplo, para ser considerado adequadamente no âmbito da cirtica ritual exige ir além do registro escrito dos “rituais”.

Para além de qualquer conceito mais ou menos universal acerca do rito e do reconhecimento dos elementos comuns, assumimos com Rappaport que o estudo de tal fenômeno depende amplamente de como ele é concebido pelo sujeito que o pratica, da forma como os elementos que o compõe são postos em relação . Isso significa que o modelo epistemológico não pode ser escolhido arbitrariamente, mas deve responder adequadamente ao modo como o rito é assumido estruturalmente no âmbito do grupo humano ao qual pertence. O rito possui uma forma dentro deste ou daquele ambiente e isto deve ser considerado seriamente para não falsearmos o estudo já na sua fundação.

Neste sentido, no concernente à experiência católica, por exemplo, ao tratarmos do rito não pode prescindir da categoria da “sacramentalidade”. No entanto, pode ser que esta categoria não se aplique a experiências litúrgicas alhures. Um paradigma gnosiológico que não integre esta noção no caso do estudo de ritos católicos ou que a imponha na análise de práticas litúrgicas que não a exigem tendem a falsear o fenômeno aos olhos de quem o estuda e conduzir a equívocos teoréticos. Partindo desse pressuposto e por conseguinte, assumindo como cardinal a categoria da sacramentalidade no estudo da ação litúrgica, entendemos que o modelo epistemológico deva atender a compreensão de rito como sacramento e vice versa (Biffi). Aquilo que os católicos chamam de sacramento é o que costuma-se rotular com o termo “rito”. Não é difícil, evidentemente, perceber como um modelo epistemológico possa separar a forma ritual do conteúdo sacramental, como o fez a escolástica. O sacramento “dispõe” de um rito, mas não se identifica com ele. Uma avaliação da performance ritual nestes termos conduzirá o estudioso a pensar o “falência” do rito apenas como um problema referido àquilo que é “essencial” para que “haja sacramento”: forma (entendida depois como fórmula), matéria e ministro (um ministro e geralmente ordenado).

Se pensarmos com os critérios internos da ritualidade/sacramentalidade cristã católica, a escolha do modelo epistemológico nascerá do confronto com as disposições conciliares sobre a Liturgia (Vaticano II, Sacrosanctum Concilium) e que deram origem aos novos rituais com os quais os fiéis celebram. Em termos práticos, uma abordagem sensata e adequada porque é capaz de “fotografar” o fenômeno ritual a partir de sua própria natureza. Não poderemos usar o mesmo modelo epistemológico para estudar – indistintamente – a missa segundo o uso trindentino e aquela celebrada conforme o Vaticano II. O “per ritus et preces sed bene inteligentes” ressente uma epistemologia que não tolera a forma ritual preconciliar. Os critérios que nascem de um modelo e outro são diferentes. O que seria considerado falimento do rito em um caso não o seria no outro. Um exemplo bem simples a exigência de uma comunidade para celebrar a eucaristia. Enquanto na forma ritual tridentina basta o ministro ordenado, forma conciliar do Vaticano II exige-se a reunião dos fiéis. O critério, portanto, não pode ser externo ao rito, mas segundo a sua “forma”. Ambas tradições, aquela tridentina e a pós-conciliar podem ser abordadas a partir da época patrística com mais ou menos sucesso. Há, também outros aspectos a considerar: uma epistemologia adequada ao rito segundo o Concílio Vaticano II exige que se reconheça o estatuto ergológico do rito uma vez que a liturgia é considerada exercício, ou seja, um tipo de ação (performance) e por fim, recordando ainda que a celebração é vista como evento comunicativo (aspecto linguístico). Tudo isso nos leva a buscar um modelo epistemológico que dê conta da natureza teoantropologica da liturgia, capaz de promover uma leitura e interpretação do fenômeno ritual considerando a característica particular da tradição cristã-católica: sacramentalidade.

 

 

 

 

 

 

Padre Márcio Pimentel, presbítero da Arquidiocese
de Belo Horizonte, membro do Secretariado
Arquidiocesano de Liturgia, doutorando em Liturgia
Pastoral pelo Instituto de Liturgia Pastoral da
Abadia de Santa Justina em Pádova-Itália



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