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[Artigo] Ritual e Virtual são formas do real – Padre Márcio Pimentel, doutorando em Liturgia e membro do SAL

É muito comum contrapor o virtual ao real, mas também o ritual é, habitualmente, vítima desta abordagem inapropriada.

O virtual… é tido como “não-real” porque o “real” é confundido com o “físico”. Logo, virtual seria o não-físico, mas isto não o faz menos real. Nós estamos neste momento conectados “virtualmente”, vocês aí e eu aqui… territórios diversos, tempos diversos… para chegar minha imagem aí tem um “delay”, um atraso… É apenas aparente que vocês estão me escutando enquanto estou falando. Mas, opa, estou aqui lendo na tela do computador as mensagens de vocês… Se estou lendo, estou vendo e se estou vendo é porque está escrito… se está escrito, aparece-me sobre um suporte, uma plataforma. Decisivamente, tem algo de físico. Se o virtual não se opõe ao real e ao físico, o que afinal é ele afinal? Um dos maiores entendedores do assuntos diz que o virtual é equivale ao não-atual. O “hoje” é completamente relativizado nas interações virtuais. Vejamos: hoje é que dia? Esperar, ler as respostas… Vejam, a maneira de lidar com a realidade é completamente diferente… Este aspecto incide, interfere diretamente na liturgia.

A característica mais precisa do virtual é a “não-presença aqui e agora”. O atual é a “presença aqui e agora”. Esta é uma das dificuldades mais significativas para falar em “experiência litúrgica virtual”. Retornaremos neste ponto quando falarmos do rito. Eu estou falando com vocês… estou aqui e aí na sua casa… “aqui” é já “amanhã” aí. Depois que terminarmos a nossa conversa eu vou dormir; vocês, certamente, vão jantar… eu estou “com vocês”, mas se vocês me convidam para comer uma pizza “com vocês”… a mesma pizza, não posso porque “não estou” corporalmente com vocês.

A comunicação, interação, convivência virtual, portanto, não é irreal e não é completamente não-física (porque o software depende de um hardware), mas é “encontro” sem “corpo”. O virtual é a transformação do real-corpo em real-informação que se difunde como real-representação. A técnica digital é exatamente essa: transforma tudo em “código numérico” que é lido por aparato específico e depois veiculado pelas plataformas adequadas que geram representações realistas do real. Essas plataformas são, por um lado físicas (os computadores) e de outro cibernéticas (a rede).

No entanto, esta “informação” precisa, de novo, tornar-se corpo e como isso é feito? Por “simulação”. O virtual – que é não-corpo – precisa mostrar-se corporalmente, surge a representação. Voz, imagem, sensação tátil… o virtual extravasa o corporal imitando-o. Eu posso ver você pela câmera de segurança depois de ativá-la remotamente. Você olha para a câmera e fala “comigo”. Mas está interagindo “corporalmente” com a câmera e só “virtualmente” comigo. É real. Mas sua relação comigo não é “direta”, é mediada por “algo” que não sou eu e nem é você.
De certo modo, diríamos que é uma “redução” do real à sua “representação”. Atenção: não é imaginação porque o virtual tem efeito sobre nós e no mundo no qual vivemos. Se peço uma pizza pelo site “x”, faço todas as transações, em poucos minutos a pizza chegará. Se só imagino esse procedimento, morro de fome.

Bom… penso que estas informações sobre o virtual nos ajudam a perceber como ele seja um grande ganho da humanidade (que na verdade é tão antigo quanto ela, só que agora o virtual é digital!), mas fica mais fácil perceber que ele – o virtual – não resolve tudo, não serve para tudo… embora ele tenha penetrado até a medula de nossa existência. É uma quase-presença… mas só isso: “quase”.

O ritual… tal como o experimentam as religiões (e este é o nosso escopo) é exatamente o “oposto” do virtual porque é sempre atualização. Não no sentido “intelectualístico” de atualização de um significado, mas de ser performance, um atuar no tempo e espaço precisos. É um fazer-se corpo, uma presença “in-carnis”, corporificada. Enquanto no âmbito do virtual o corpo é “reduzido” sobretudo ao auditivo e visivo, no rito a corporeidade é amplamente potencializada em todas as suas linguagens. (Exemplo do ritual virtualmente presente no “Missal”).
Infelizmente, nós cristãos católicos (mas também os nossos irmãos reformados, protestantes) virtualizamos a fé, transformando-a em informação, em algo abstrato, e abdicamos de sua qualidade fundamental: de ser revelação de Deus na carne. O “rito” foi riscado não só da teologia (até hoje, basta verificar como ainda se insiste em estudar os sacramentos, a própria carga horária, a preponderância de disciplinas “exegéticas” relacionadas à Sagrada Escritura) mas também da experiência da fé da maioria das pessoas. Graças a Deus resistiu aqui e ali graças à religiosidade popular, até que o Concílio Vaticano II forneceu legitimamente o caminho para reinseri-lo. No entanto há ainda tanto caminho por fazer.
Quando falamos em rito estamos nos referindo à fé em ato, a fé acontecendo, a fé “atualizando-se” isto é, atuando corporalmente.

A relação entre virtual e ritual

Nós podemos pensar que haja certa proporcionalidade entre ritual e virtual porque ambas realidades compartilham alguns elementos comuns como a representação, dinâmica simbólica, a constituição estética… mas se separam quanto ao modo de correlacionar e tratar estes elementos e colocá-los em funcionamento: enquanto o rito se define sobretudo como “ação” vinculada à mediação corporal o virtual é está no plano de uma ação que é “informada” (=informação) como excedência do corporal.

Onde o ritual e o virtual coincidem é onde se desentendem: ambos são médium, mediação. O problema – e aqui é filosófico, fenomenológico, antropológico, teológico e litúrgico – é que o rito é mediação na “imediatez” do corpo. É mediação da graça – isto é, a vida de Cristo, a vida divina, a comunhão com Deus – que se dá através da humanidade de Jesus – e por isso os ritos são necessários porque tornam a nossa carne símbolo da humanidade de Jesus. Como a humanidade de Jesus é a nossa própria humanidade, temos uma “mediação” no imediato da nossa carne, do nosso corpo. Os ritos “funcionam”, no sentido de promover a sacramentalidade, de fazer-nos encontrar o Senhor face a face, como num encontro, por essa razão. A face de Deus através da face humana de Jesus que reconhecemos graças aos ritos. Em um encontro íntimo, familiar, habitual, “clássico” não há nada entre mim e o outro. São dois corpos que se abraçam. A liturgia é exatamente isso.

Transformar a liturgia em um “evento virtual” seria tornar o imediato – que o nosso corpo – mediado. Teríamos, na verdade, um cancelamento da mediação, pois seria a mediação da mediação, já que a experiência corporal nas mídias é virtualmente representada. Isso funciona “mais ou menos” em alguns aspectos linguísticos, como por exemplo “ouvir” a homilia. Mas o condicionamento é enorme, pois existem outros códigos linguísticos ativados numa conversação familiar, por exemplo.

A meu ver, entre ritual e virtual há limites praticamente insuperáveis e devemos lidar tranquilamente com isso, ao invés de ficar fazendo remendos. Para ser claro, uso dois exemplos: um mais pudico – o Papa Francisco, certa vez disse que não se pode ser mão e pai por telefone, não se cria uma criança por telefone. Às vezes, é verdade, atuamos como pai e mãe por telefone… mas a relação não se produz ali… é somente uma mostra “virtual” do que se atualiza na convivência presencial, sob o mesmo teto, etc. Outro exemplo é o sexo. Relação sexual por telefone, chat, videochamada, enfim – o que quisermos – é “relação” até que ponto? No final das contas não seria um tipo de masturbação. É simplesmente um remendo àquele que é que é o encontro íntimo, a entrega, o toque, o calor do estar juntos, a beleza do que é nupcial.

A liturgia é uma realidade nupcial, é o casamento da graça com a carne humana, do Espírito de Cristo com o Corpo Eclesial. Há limites que precisam ser respeitados para não gerar prejuízos à fé. Sou do parecer que estes “limites” precisam ser vividos com tal. Já falei no início, rapidamente, do jejum eucarístico. Se pode também ver nestes limites não apenas algo de negativo. O encontro entre corpos, entre pessoas que se amam se entregam como sacramento da Páscoa de Cristo pode ser vivido de outras formas. Neste sentido, a transmissão de celebrações e também a produção de programas educativos pode ajudar bastante… desde que não confundam as pessoas. Por exemplo, ao invés de cada paróquia transmitir todo dia uma missa celebrada com duas três pessoas, que como disse, não resolve para nada a impossibilidade de celebrar a Eucaristia, porque não pensar em um programa que promova a Leitura Orante. Essa é possível fazer via mídias sociais, sobretudo porque há um suporte de interatividade possível. Com a leitura orante se pode chegar ao ensino prático da tipologia, fundamental para celebrarmos bem a Palavra de Deus.



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