Flávia Costa Reis[1]
memorialhistoriadorinv@arquidiocesebh.org.br
Hebert Gerson Soares Júnior[2]
O distrito de Morro Vermelho, localizado a 12 km de Caeté, tem sua origem no início do século XVIII, ligada à extração de ouro nas minas de Vira Copos, embora a tradição relate que seus primórdios datem de anos antes, em torno de 1650. A região se tornou célebre por iniciar a primeira insurreição da população contra a cobrança dos impostos, pela Coroa Portuguesa, por meio do número de bateias[3].
Era geral o descontentamento nas três Comarcas da Capitania, cabendo aos habitantes do arraial do Morro Vermelho, pertencente á Villa Nova da Rainha (hoje cidade de Caeté), darem o brado honroso de alarma para a resistência armada, ante a qual intimidou-se o governador D. Braz da Silveira. (EFEMÉRIDES MINEIRAS, 1897, p. 434)
Local bucólico, de costumes seculares, conserva, ao alto de uma de suas colinas, a Capela de Nossa Senhora do Rosário, pertencente à Paróquia de Nossa Senhora de Nazaré, de onde se contempla bela vista dos montes da região. Tradicionalmente, afirma-se que tenha sido erigida em 1703, porém, o primeiro registro encontrado de sua existência data do ano de 1790, tratando-se do livro de Compromisso da Irmandade da Virgem Senhora do Rozario dos Pretos do Arrayal do Morro Vermelho da Freguezia da Senhora do Bom Sucesso do Caeté Comarca de Sabará, onde encontramos o seguinte relato:
E como esta Irmandade já tem sua Capella própria erecta com Licença unicamente do Ordinário do Bispado, faltando a essencial, q’ he a de Sua Magestade Fidelissima, como Governadora, e perpetua Administradora do Mestrado, Cavalaria, e Orde de Nosso Senhor Jesus Christo, a qual por ignorância não procurou conseguir; agora adepreça da Real Piedade de V. Magestade, com a aprovação da mesma Irmandade, e Confirmação destes Estatutos. (COMPROMISSO…, Cap. XVIII, 1790).
A citação acima demonstra que no ano de 1790 a capela já se encontrava construída e em uso, faltando, no entanto, a autorização da Coroa Portuguesa que, por desconhecimento, não se havia solicitado, bem como a aprovação do referido Livro de Compromisso. Sobre essa questão, foi localizado documento no Arquivo Histórico Ulltramarino[4], datado de 1793, onde a Coroa solicita ao Ouvidor da Comarca do Sabará, Paulo Fernandes Viana, consulta sobre a possibilidade de a capela ter sido erigida indevidamente. Em resposta, o Ouvidor responde que, por se encontrar tão próximo à Matriz, não haveria mesmo a necessidade de tal construção. Entretanto, finaliza deliberando nos seguintes termos:
He pois o mesmo parecer, q visto estar já erigida a da Capeala sem necessidade algúa, qdº V. Mage haja pr bem de confirmar a sua erecção, e o Compromisso, q’ a Irmande Recorrente tem apresentado, seja sempre considerando-se a dª Capella como hum Altar Volante da Matriz, annexo a ella, com inteira sujeição ao seo Parocho, e illesos todos os Dirtos e regalias Parochiaes [grifo nosso]: V. Mage porem determinará sempre o qe for servida. Sabará 7 de Junho de 1793.
O documento final, com a devida determinação Real, não pode ser localizado, mas infere-se que a sugestão dada pelo Ouvidor da Comarca, tenha sido acatada, pois nas visitas pastorais, executadas pelo então Bispo, Dom Frei José da Santíssima Trindade, entre 1822 a 1825, a capela não é citada como filial da Matriz de Nossa Senhora do Bom Sucesso, ao contrário da Igreja de Nossa Senhora de Nazaré, também localizada no arraial do Morro Vermelho.
Essa última, elevada à freguesia a partir do ano de 1880, por meio da Lei Mineira nº 2.709, de 30 de novembro, passa a ter como sua filial a Capela de Nossa Senhora do Rosário. A elevação por instituição canônica ocorreu por provisão episcopal de 15 de maio de 1885.
Tendo como referência suas duas igrejas setecentistas, o distrito de Morro vermelho é extremamente marcado pelas tradições, onde destacam-se as festas religiosas, mantidas de forma fervorosa pela população local, tais como: a Semana Santa, a Festa de Nossa Senhora de Nazareth e a Festa de Nossa Senhora do Rosário. Como desdobramento essa última, encontramos a tradicional Festa do Aluá, realizada anualmente no mês de outubro, e organizada pela Irmandade.
Faz parte de suas celebrações o “Cortejo do Aluá”, procissão com ampla adesão popular, que percorre as ruas centrais do distrito, carregando a bandeira de Nossa Senhora do Rosário à frente, cantando e tocando instrumentos. Seu nome, aluá – corruptela de “ao luar”, pois seu preparo era sempre à noite, de forma furtiva, se refere a uma bebida tradicional dos escravos, que trabalhavam na mineração. Não possui teor alcoólico, tem cor de garapa e é preparada à base de abacaxi.
A festa inclui, também a Cavalhada Mirim, que ocorre no adro da Capela de Nossa Senhora do Rosário. As crianças montadas em cavalinhos de pau enfeitados com tampinhas amassadas (imitando o som do guizo) reproduzem as evoluções da Cavalhada de Nossa Senhora de Nazaré, acompanhadas pela Sociedade Musical Santa Cecília de Morro Vermelho.
Arquitetura:
A edificação localiza-se em amplo adro, às margens da estrada que liga o distrito de Morro Vermelho à cidade de Raposos. O adro é gramado e pontuado por vegetação arbustiva de médio porte; apresenta topografia irregular, sendo delimitado por cerca de arame. O edifício segue o modelo habitual das capelas do segundo tipo do período colonial na Capitania de Minas Gerais, surgida em meados do século XVIII. As volumetrias são definidas pela nave, capela-mor, mais estreita, menor e mais baixa em relação àquela primeira, e a sacristia disposta lateralmente à capela-mor.
A fachada plana é resolvida com grande simplicidade: porta central e três janelas rasgadas à altura do coro, dispostas em triangulação. As janelas central e lateral esquerda abrigam sinos, cumprindo o papel de sineiras. Acima, localiza-se pequeno óculo. Os telhados sobre a nave e capela-mor acontecem em duas águas, com estrutura de madeira e vedação em telhas cerâmicas curvas. Neles, a presença do contrafeito imprime grande elegância ao elemento. A sacristia recebe telhado de uma água.
Internamente a capela segmenta-se em átrio com coro alto, nave e capela-mor unidas pelo arco-cruzeiro, e sacristia à direita da capela-mor. O coro é acessado por escada em madeira, localizada no átrio, ao fundo. A balaustrada torneada é pintada em azul. Na nave, o piso é feito em tabuado de madeira, com paredes caiadas de branco e amarradas por tirantes de madeira. Os vãos das ilhargas estão dispostos simetricamente, configurando estreitas e profundas seteiras fechadas por vidro fixo. No lado do Evangelho, localiza-se o púlpito, ao qual se ascende por meio de escada. Nos ângulos do arco-cruzeiro, situam-se os altares colaterais. O forro é executado em tabuado de madeira, de formato trifacetado, tendo ao centro pintura com representação da aparição da Virgem Maria a São Domingos de Gusmão, ocorrida em 1214, na igreja do mosteiro de Prouille, na qual a mãe de Jesus entregou o Rosário ao fundador da Ordem Dominicana. Nas laterais apresenta pintura simulando balcão simplificado, com ornamentação fitomorfa, interceptado por montantes sobre os quais se assentam anjos que seguram cordão de folhagens que contornam todo o perímetro do forro. Nos ângulos, medalhões moldurados com efígies dos Evangelistas.
A capela-mor mantém o mesmo acabamento do piso e paredes da nave, sendo o presbitério mais elevado em relação à capela-mor. Nele, ao lado da Epístola, localiza-se abertura guarnecida de uma balaustrada em madeira recortada e pintada em azul, que permite conexão com a sacristia. Ao fundo, em posição de destaque se encontra o retábulo-mor. O forro em tabuado de madeira, de formato abobadado, apresenta ao centro pintura com a representação do Santíssimo Sacramento, em formato de pomba, circundado por nuvens e ladeado por anjos com arranjos florais nas mãos. Em todo o perímetro, a pintura simula moldura em faixa lisa com decoração adamascada, e friso em cujos ângulos se forma elemento fitomorfo.
Ainda sobre os altares, pode-se afirmar que os três são em tabuado de madeira, sendo o altar-mor com pintura em marmorizado, datável do século XIX. Os laterais mostram mistura de aspectos que podem ser remetidos a diversos estilos de diferentes épocas, prevalecendo linhas neoclássicas.
Quanto à sacristia, possui piso em madeira, paredes caiadas e teto de telhas vãs[5]. Ao fundo, no lado do Evangelho, possui porta de acesso ao espaço sob o retábulo e à escada do camarim. Nela ainda se encontra porta e janelas voltadas para a frente e lateral da capela, respectivamente.
Devido à sua importância, a capela foi tombada pela municipalidade, por meio do Decreto nº 2.016/04, de 06 de abril de 2004. Além disso, em seu Dossiê de Tombamento, se afirmam que a edificação “[…] tem extrema significatividade histórica para a comunidade descendente afro-brasileira, que nesta capela manifestou na resistência às tentativas de aculturação e fez prevalecer suas tradições”.
Referências Bibliográficas e Fontes:
ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO. Projeto Resgate – Minas Gerais. Biblioteca Digital Luso-Brasileira. Carta de Paulo Fernandes Viana, ouvidor da Comarca do Sabará, dando seu parecer sobre a indevida ereção de capela, fora da Igreja Matriz, pelos irmãos da Irmandade do Rosário dos Pretos do arraial do Morro Vermelho, freguesia do Bom Sucesso, da Vila Nova da Rainha, da referida Comarca. – Anexo: Em anexo: 1 provisão. [Manuscrito]. Cx. 138, Doc. 17. 1793, Junho,7. Disponível em: https://bdlb.bn.gov.br/acervo/handle/20.500.12156.3/351839. Acesso em: setembro de 2021.
CAETÉ. Prefeitura Municipal. Dossiê de tombamento Capela do Rosário. Morro Vermelho. Caeté: Secretaria Municipal de Cultura, Miguilin Assessoria Cultural, 2004.
COMPROMISSO da Irmandade da Virgem Senhora do Rosário dos Pretos do Arraial de Morro Vermelho da freguezia da Senhora do Bom Sucesso do Caeté Comarca de Sabará. 1790. Biblioteca Brasiliana Digital. Disponível em: < https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5389>. Acesso em setembro de 2021.
INVENTÁRIO do Patrimônio Cultural da Arquidiocese de Belo Horizonte: Capela de Nossa Senhora do Rosário – Caeté – Morro Vermelho (MG) / Coordenação: Mônica Eustáquio Fonseca. Belo Horizonte: Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte, 2016.
LEITE, Roberta Vasconcelos; MAHFOUD, Miguel. A tradição faz parte do distrito, agora está fazendo parte da escola: a articulação entre cultura popular e educação escolar na comunidade rural de Morro Vermelho. Revista @mbienteeducação, São Paulo, v. 3, n.1, p. 52-74, jan./jun. 2010.
MARQUES, Agostinho. Passagens por “O Morro Vermelho”. Belo Horizonte: Líttera Maciel, 1983.
POEL, Francisco van der. Dicionário da religiosidade popular: cultura e religião no Brasil. Curitiba: Nossa Cultura, 2013.
SLOW FOOD FOUNDATION FOR BIODIVERSITY. Aluá. Disponível em: <http://www.fondazioneslowfood.com/en/ ark-of-taste-slow-food/alua/> Acesso em: fev. 2017.
TRINDADE, José da Santíssima; OLIVEIRA, Ronald Polito de. Visitas pastorais de Dom Frei José da Santíssima Trindade: 1821-1825. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1998.
TRINDADE, Raimundo Octavio da. Instituições de igrejas no bispado de Mariana. Rio de Janeiro: Ministério da educação e Saúde, 1945.
VEIGA, José Pedro Xavier da. Ephemerides Mineiras: (1664-1897). Ouro Preto: Imprensa Official do Estado de Minas, 1897. v. II.
[1] Possui graduação em História pela PUC-Minas (2007), e atualmente é aluna do mestrado em Artes da Escola de Belas-Artes da UFMG. Integra o corpo técnico de colaboradores do Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte/Inventário do Patrimônio Cultural.
[2] Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela PUC-Minas (2014), e pós-graduação em Patologia, Terapia e Manutenção de Edificações (2018) pela mesma universidade. Atualmente é aluno do mestrado em Arte da Escola de Belas-Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integra o corpo técnico de colaboradores do Memorial da Arquidiocese de Belo Horizonte/Inventário do Patrimônio Cultural.
[3] Por volta de 1715, o Governador de Minas e São Paulo, Dom Baltazar da Silveira, impôs a cobrança de impostos pelo número de bateias empregadas na extração do ouro. O protesto generalizou-se em toda Minas Gerais, incluindo em Morro Vermelho, para onde Governador viajou, sendo recebido com armas, obrigando-o a declarar a isenção do imposto.
[4] Arquivo Histórico Ultramarino, Minas Gerais – 1793, junho-7, Caixa: 138; doc: 17
[5] Expressão que quer dizer telhado sem forro, no qual se avista a estrutura do telhado.