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QUANTOS JUSTOS HAVERÁ?

O Brasil de hoje me recorda a história de Abraão com Deus seu Senhor, que o havia feito deixar para sempre casa, parentela e família, e caminhar em direção a um futuro desconhecido.  Abraão partiu confiante apenas na palavra daquele que o enviara.  E por isso é venerado como pai da fé.

Essa resposta de fé e obediência vigilante do patriarca foi grata ao coração do Altíssimo, que com ele estabeleceu aliança, cumpriu promessas inimagináveis e fez do ventre ancião e estéril de sua mulher, Sara, uma posteridade mais numerosa que as estrelas do céu e as areias do mar.  Deus confiava em Abraão e mantinha com ele uma relação de amizade.

E é por isso que o Senhor lhe revelou que estava farto daquilo que acontecia com as cidades pecadoras, Sodoma e Gomorra.  Fartou-se, cansou-se das infidelidades, corrupção, trapaças que aconteciam incessantemente em seus territórios.  E confidenciou a seu servo e amigo Abraão sua intenção de destruir as cidades iníquas: “É imenso o clamor que se eleva de Sodoma e Gomorra, e o seu pecado é muito grande. Eu vou descer para ver se suas obras correspondem realmente ao clamor que chega até mim; se assim não for, eu o saberei.”

Porém, o coração de Abraão confrangeu-se de compaixão e dor ante a possibilidade de destruição daquelas cidades.  Conhecendo Deus e Sua Justiça, começou a interceder e apelar às entranhas misericordiosas do Altíssimo: “Fareis o justo perecer com o ímpio?” Para Abraão, era incompatível com o Deus de toda justiça não perceber que havia justos na cidade iníqua. “Talvez haja cinquenta justos na cidade: fá-los-eis perecer? Não perdoaríeis antes a cidade em atenção aos cinquenta justos que nela se poderiam encontrar? Não, vós não poderíeis agir assim, matando o justo com o ímpio, e tratando o justo como ímpio! Longe de vós tal pensamento! Não exerceria o juiz de toda a terra a justiça?”

E o Senhor consentiu ao pedido de seu servo Abraão.  Se pudessem ser encontrados cinquenta justos, Ele pouparia a cidade e Seu divino braço sobre ela não desceria. Porém, o pai da fé temeu por sua audácia.  Seu coração encheu-se de inquietude.  E se não existissem ali cinquenta justos?

A peroração com o Altíssimo continuou, pois, com Abraão implorando a misericórdia já não para cinquenta, mas para quarenta e cinco e obtendo mais uma vez a promessa de misericórdia do Senhor.

Porém Abraão, que ia cada vez mais tomando consciência do quão grandes eram os pecados de Sodoma e Gomorra, foi diminuindo em seu diálogo o número de supostos justos. Desceu sua estimativa para quarenta, depois para trinta, vinte até chegar a dez justos.  A promessa final de Deus se deteve em dez justos por cuja justiça toda a cidade seria poupada.

O final da história é feliz e triste ao mesmo tempo.  Na verdade, não havia dez justos em Sodoma, mas apenas Ló, sobrinho de Abraão e sua família, totalizando quatro pessoas. E esses foram resgatados pelos anjos do Senhor e escaparam da purificação que a justiça divina fez acontecer.

O cenário atual de nosso país lembra muito a história das cidades assassinas que provocaram a ira de Deus e sua misericórdia por causa de seu servo Abraão.  Por toda parte, as notícias que chegam são apenas de injustiça, corrupção, crimes de todos os calibres e tamanhos. Por virem do centro do poder, esses crimes atingem e afetam a vida de toda a população brasileira, que geme sob o peso duro da diária luta pela sobrevivência, sempre mais difícil e penosa.

As listas se multiplicam – a de Janot, a de Fachin etc. – trazendo uma infinidade de injustiças e de injustos que as cometeram e comprometem toda uma população de muito mais de 200 milhões de habitantes. Os pobres veem seus sonhos roubados, seu futuro espoliado por assaltos multimilionários aos cofres públicos e propinas incalculáveis de ricos empresários. Refugiados em paraísos fiscais, o produto do roubo e seus detentores acreditavam escapar da justiça humana.

Vendo o vazio de lideranças positivas no mundo da política e olhando tristemente o mar de lama em que se transformou Brasília, ouvimos a voz do pai da fé, Abraão, intercedendo pelos justos que não deveriam perecer com os ímpios. E quando uma nova delação faz aparecer novos nomes, e a lista dos injustos aumenta, temos a tentação de perguntar: Mas haverá cinquenta justos?  E quarenta? Ou trinta?  Ou mesmo vinte? Ou apenas dez? O pânico que se apossa de nós sinaliza que talvez não haja nenhum.

No entanto, Ló e sua família foram resgatados ao final da história.  Dos escombros do nosso país, a esperança discreta se deixa perceber.  Há esforços, iniciativas, comunidades, vocações políticas feitas de idealismo e entrega.  A lista de Abraão não está vazia. Graças a isso é permitido ter esperança.

Possa o nosso país reencontrar o caminho de sua legitimidade democrática, de seu crescimento, da superação das imensas desigualdades e iniquidades que o assolam e vão sendo exacerbadas pela gigantesca corrupção que se revela nos capítulos da Operação Lava jato.  Mas isso só será possível se, sem deixar de confiar e esperar na misericórdia divina, for feita uma grande avaliação, uma profunda autocrítica por parte de todos – cidadãos e homens públicos – a fim de que o Brasil possa retomar o seu caminho com dignidade e coragem.

Como sempre, é a Revelação que nos ajuda uma vez mais.  Diz a tradição talmúdica que o destino do mundo repousa sobre 36 justos desconhecidos. Nem eles mesmos sabem quem são. Certamente Deus sabe.  Esperamos sua manifestação, que impedirá nosso país de afundar no caos e viver uma aurora de esperança em meio a tanta decepção e desespero.

Maria Clara Bingemer
Teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio

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