Novamente celebramos o mistério maior do cristianismo: a Páscoa do Senhor. O tríduo pascal começou após a ceia onde o Filho foi entregue por alguém mais próximo de seu grupo de discípulos. Em seguida, fomos convidados a contemplar sua dor quando foi julgado, condenado e depois torturado, escarnecido, crucificado para, finalmente, morrer no suplício reservado aos marginais e bandidos, fora das portas da cidade.
Depois disso, porém, vivemos um hiato, um tempo feito de ausência e silêncio que desembocou então na celebração da Ressurreição daquele que foi crucificado e morto. Trata-se de uma festa de alegria, de vitória, de vida em plenitude. A liturgia é permeada de aleluias e cânticos de louvor, aclamando o Crucificado que venceu a morte e nos deu nova vida.
Mas a alegria da Ressurreição tem um preço e um custo. Trata-se da vitória de um Crucificado sobre uma morte cruel e violenta, na qual Deus diz ao mundo que o amor vence a morte. De que amor se trata? Não certamente do que os gregos entendiam por philia, amizade entre iguais, prazerosa e simétrica. O amor que levou Jesus à Cruz foi ágape feita de entrega e saída de si, de serviço desinteressado e generoso aos outros; assumiu a perseguição e a rejeição no próprio corpo e na própria vida até perder a vida para que outros possam tê-la.
Os primeiros cristãos, após o deslumbramento da experiência de verem vivo aquele que haviam contemplado morto, começaram imediatamente a narrar a Paixão do Crucificado. Com isso pretendiam penetrar um pouco mais naquele mistério aparentemente incompreensível de como o amor desemboca na dor mais profunda de que se tem notícia na história da humanidade, para terminar com uma vitória que não apaga o que foi sofrido e doído, mas o transfigura em missão e anúncio jubiloso. O seguimento de Jesus de Nazaré, reconhecido como o Senhor Exaltado, Cristo de Deus, foi sendo sempre mais entendido como uma experiência de paz e de alegria, mas da qual a dor não está ausente.
O mistério da Paixão, que tem como final não o túmulo e o nada, mas a ressurreição, vida nova e pujante, é o que a Igreja celebra neste tempo litúrgico. Em todos os significados, paixão é compatível com excesso, superabundância, seja de sentimentos, gosto, desgosto ou sofrimento. Não entra na zona dos meios termos, dos tons de cinza, a paixão.
Estar apaixonado é necessariamente estar possuído, repleto, invadido por um excesso de sentimento ou subjugado por um excesso de dor e sofrimento, ou cego por uma superabundância de rancor. É este excesso que se oferece à nossa contemplação nesta Semana que se inicia e que o calendário chama Semana Santa. Infelizmente converteu-se em mais um feriado. E, geralmente, sobra pouco espaço para se viver, experimentar, celebrar a grande protagonista desse evento: a paixão.
Pois o Mistério Pascal nada mais é do que mistério de Paixão. Paixão de Jesus por Deus que é seu Pai e cujo desejo é preciso acima de tudo realizar. Ainda que doa, que custe, que mate. Paixão de Jesus – o filho do carpinteiro, o filho de Maria, que ia à Sinagoga e conhecia a Lei – pelo projeto do Reino de Deus. Projeto que exigia dedicação integral, que implicava anunciar uma Boa Notícia a tempo e a contratempo por cima dos telhados. Projeto de inclusão que chamava à mesa para a refeição os excluídos de toda espécie: doentes, leprosos, fariseus, publicanos, mulheres, crianças, prostitutas, ladrões.
Se algo se pode dizer de Jesus é que era um apaixonado. A paixão era o motor de sua vida e sua história, o impulso de sua atuação, a inspiração de suas palavras. Sob a força da paixão curou doentes e endemoniados, e ressuscitou mortos. Por ela impulsionado, acolheu os gestos de amor da prostituta no banquete, do publicano que lhe oferecia hospedagem, do leproso que se apresentava para ser tocado, da samaritana que lhe dava de beber e lhe fazia perguntas.
E ainda obedecendo à dupla paixão pelo Pai e pelo Reino enrijeceu o rosto e começou a caminhar para Jerusalém, seguido por apavorados e duvidosos discípulos que nada entendiam e cujo coração tardava em arder. Chegando à cidade onde haviam morrido tantos profetas, chorou. Derramou lágrimas de apaixonada compaixão que nada tinha de autocomiseração pelo destino que o aguardava. Mas sim de visceral dor por não haver conseguido reunir em seu misericordioso regaço os filhos de Sião que tanto amava.
E ali a Paixão de Jesus – pelo Pai, pelo Reino, por aqueles e aquelas que o Pai lhe dera – vai se converter no grande ritual, na grande liturgia da agonia e da morte, que terminará no Gólgota, na hora nona, trazendo as trevas sobre a terra. E ali, aos que o seguiram – e aos que com medo fugiram – será proposta uma nova chave de leitura para a Paixão. O convite é abrir o coração e a vida, para que a Paixão de Jesus se transforme em Paixão por Jesus.
Viver a Semana Santa, portanto, é ouvir o convite para apaixonar-se. Nada tem de morbidez ou masoquismo tenebroso. Trata-se de um caminho luminoso esse que se descortina no Mistério Pascal. Luminoso porque é caminho de vida. Apesar da dor, apesar do sofrimento, apesar da morte que ninguém queria… é o caminho do amor. Pois sabemos o fundo mais profundo: se não tivermos algo pelo qual estamos dispostos a morrer… valerá a pena viver? Terá sentido uma vida que se resume à magra moral, raquíticos prazeres, insípida segurança, solitárias sensações? A Paixão de Jesus ensina que viver apaixonado é a única maneira de viver em plenitude.
O teólogo suíço Hans Urs von Balthasar diz que “…Deus expõe à vista humana seu ser mais profundo no sofrimento; um sofrimento que, além de tudo, assume livremente uma culpa alheia, enquanto o resto dos caminhos que conduzem o ser humano a Deus são caminhos de superação da dor, de busca da “vida bem-aventurada”, do desejo de nunca mais ver-se exposto à contingencia e à tribulação”.
A alegria pascal que se segue ao sofrimento da Cruz é real e verdadeira. Mas só acontece se não há uma recusa ou uma negação da dor e da morte. Sobretudo da dor e da morte que abatem e oprimem os irmãos. Aquele que segue a Cristo Ressuscitado já não vive para si, mas para Ele. E por Ele é chamado a consolar os tristes e aflitos, a atender os pobres, os órfãos e as viúvas, a alimentar os famintos e vestir os nus. Se buscar a alegria eludindo essas situações negativas que clamam por presença e auxílio, o que encontrará será o vazio de um gozo efêmero e oco, que logo se esvairá entre seus dedos como água.
A alegria pascal que celebramos no domingo deve recordar-nos que seguimos um apaixonado que foi condenado à morte, crucificado pelos que odiavam a verdade e eram aferrados a seus privilégios. Nesse seguimento, alguma proporção de responsabilidade participativa nas dores e sofrimentos dos irmãos nos está certamente reservada. Assumi-la com confiança é o que nos cabe. Assim como esperar e acreditar que o Pai pronunciará sobre nossa vida a palavra definitiva da vida que não morre. Enquanto o Espírito derramará em nossos corações a alegria imorredoura que jorrou na noite luminosa em que o Messias venceu a morte e se manifestou vivo e glorioso aos seus.
Maria Clara Bingemer
Teóloga – Professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio