“Um país que empequenece seus cidadãos para que possam ser mais dóceis em suas mãos, logo descobrirá que, com seres humanos apequenados, nenhuma coisa grande poderá ser realizada” (Stuart Mill). Em outras palavras, uma sociedade que “empequenece” as pessoas, nunca realizará grandes obras.
Uma afirmação assim, serve de advertência diante do nosso contexto social, político e religioso em que vivemos, onde a intolerância, o julgamento, o preconceito, a crítica destrutiva… assumem contornos assustadores, humilhando os outros, ridicularizando-os, descartando-os… Quando proferimos, contra uma pessoa ou grupos, acusações ou expressões que ferem a reputação, estamos esvaziando nossas relações de humanismo, desembocando na barbárie. E quando os meios de comunicação, sobretudo as redes sociais, se colocam a serviço deste movimento desumanizador, passamos a viver na “sociedade do desprezo”.
O espírito da acusação e de humilhação do outro, é um espírito de morte. Este mal espírito de nosso tempo, em seu exagero cancerígeno, aparece também, com muita frequência, na Igreja e em suas comunidades e grupos. Por meras aparências, suspeita-se do outro, pensa-se mal dele, condena-o no coração, marginaliza-o. Quantas pessoas já temos “empequenecidas” em nossa opinião! Diante do desapreço generalizado é preciso deixar ressoar em nosso interior as palavras de Jesus: “quem dentre vós não tiver pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra”.
As “pedras na mão” são fáceis de serem encontradas também em nossas vidas. Hoje são as pedras do WhatsApp, do twitter, das mensagens preconceituosas, das fake-news…, que bloqueiam o futuro das pessoas através da crítica sem piedade, do desprezo que destrói, da indiferença que congela as relações… A arrogância também tem raízes em nosso interior; manifesta-se no nosso pensar e agir cotidianos. Ela é a base de nossas intransigências, dos nossos preconceitos, dos nossos dogmatismos, de nossas críticas amargas, dos comentários maldosos… A arrogância mora no nosso desprezo e nas nossas ironias. Ela nos paralisa.
O convite de Jesus a reconhecer nosso pecado é a única via para que essas pedras não caiam sobre nenhum inocente e, ao mesmo tempo, nós possamos encontrar a possibilidade da transformação e da mudança. Enquanto nos habite este “espírito mau”, nada bom, nem grandioso poderá ser construído. Uma sociedade que “empequenece” seus homens e mulheres não poderá ter futuro; uma igreja que “empequenece” seus membros, através de um moralismo e um legalismo doentio, também não poderá ser testemunha do evangelho; um grupo, dentro da igreja, que faça o mesmo, estará traindo o modo compassivo e acolhedor de Jesus.
“A misericórdia de nosso Senhor se manifesta sobretudo quando Ele se inclina sobre a miséria humana e demonstra sua compaixão, para quem necessita de compreensão, cura e perdão. Tudo em Jesus fala de misericórdia; mais ainda, Ele mesmo é a misericórdia” (Papa Francisco). A presença misericordiosa de Jesus aparece claramente na cena da “mulher adúltera”, relatado pelo evangelho deste domingo. Ali, a mulher é colocada no centro, pelas autoridades religiosas que tem a lei na mão: constrangimento, humilhação, olhares julgadores, juízo de morte… sobre ela. Vítima de julgamento, ela está no centro da morte. Não há saída, perante a lei. Jesus, no entanto, toma outra atitude: desloca-se para o centro das atenções e se faz centro junto com a mulher; sua presença solidária continua deixando a mulher no centro; porém, Ele inverte a situação dela: ela agora está no centro da misericórdia, portanto, no centro da vida.
Jesus, com sua presença misericordiosa, inverte o sentido do centro: antes, centro de exclusão e violência, agora, centro como ponto de partida para nova vida. Antes, um centro atrofiado que conduzia à morte; agora, centro expansivo, pois ativa e impulsiona a vida em direção a um novo horizonte de sentido.
A partir desse centro, junto a Jesus, a mulher poderá ser autora de sua nova existência; ela é movida a expandir esse centro, indo ao encontro dos outros para testemunhar a experiência que viveu: “vai e não peques mais”. Ela, agora, torna-se centro da vida pois recupera sua autonomia e poderá abrir-se ao novo futuro, como oferta da misericórdia.
Vivamos a Quaresma como um novo tempo para nossa sociedade, para a igreja, para as comunidades! Queira Deus que nos “beatifiquemos” uns aos outros “em vida”! Só reconhecendo, com um olhar apreciativo, o profundo, o que há de bondade no coração, a luz que cada um emite, engrandeceremos os outros e faremos que nossa sociedade, nossa comunidade, seja cada vez maior. A cultura do encontro, da acolhida, do apreço pelo outro, faz chegar o Reino de Deus.
Jesus sempre revelou um “olhar alternativo”, longe do julgamento, do desprezo e da humilhação. Ele não via as pessoas através do filtro “justos ou pecadores”, nem projetava nelas suas simpatias ou antipatias, seus medos e suas necessidades.
Jesus sempre foi a luz, sem sombras nem exclusões. Ninguém nunca ficou à margem da sua luz, pois seu olhar pousava sobre todo rosto, sem diferenças de raças, línguas ou religiões. Quando Jesus se aproximava da realidade condenada, a olhava de maneira diferente do olhar domesticado pelo moralismo. Por isso, diante da insistência das autoridades religiosas que argumentavam com as pedras nas mãos, Jesus faz um silêncio, tempo e espaço que também ajudam os acusadores a olhar de outra maneira. Olhando com amor há, sim, saída para a mulher adúltera. Se não olharmos a realidade com amor, toda a nossa visão estará adulterada. Compreendem-no as autoridades religiosas quando Jesus as convida a olhar a mulher com misericórdia e a partir de sua própria realidade de pecadores. Os varões deixam cair as pedras de sua segurança e da lei, abrindo suas mãos para acolher outra visão. Assim, a mulher é salva da morte, da lei, de seu pecado e do cerco social que lhe negava a vida, simbolizado nesse grupo de homens que a rodeava. Jesus olha a interioridade, ali onde essa mulher é amada pelo Pai, e resgata sua vida dos olhares de morte que a capturam. Nesse dia, o povo que rodeava Jesus aprendeu a olhar.
Jesus é o mestre do olhar alternativo. Precisamente porque conhece o coração humano, Jesus acerta ao dizer: “Quem não tem pecado, que atire a primeira pedra”. Diante destas palavras, que desnudam as atitudes farisaicas daqueles que se achavam “justos”, todos se afastam. Ninguém é melhor que ninguém. Com quê direito julgamos, desqualificamos e condenamos?
Texto bíblico: Jo 8,1-11
Na oração: Em muitas situações difíceis da vida, o que salva é o olhar. Olhar com os “olhos cristificados”: eis o desafio. Não se trata de qualquer olhar. É o olhar limpo, diáfano, que desarma, que não esconde engano ou segundas intenções.
Contemplar o rosto do outro é sentir sua presença, sem pré-conceitos e pré-juízos…, vendo nele o sinal da ternura de Deus. Olhar admirado e gratuito, como aquele de Jesus, que transforma, que liberta e que se comove diante da realidade, especialmente da frágil realidade humana.
– Seu olhar: marcado pelo peso da lei ou pelo peso do amor?
Pe. Adroaldo Palaoro sj