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A clínica do vazio

Massimo Recalcati, um dos mais importantes psicanalistas italianos, vem refletindo sobre o impacto das transformações aceleradas das sociedades contemporâneas na psicologia dos indivíduos. A sua obra interseta, de forma original, campos de saber diversificados: da prática clínica à filosofia e à estética, da política ao texto bíblico. E, mesmo para um público não especializado, o mapeamento que produz sobre o nosso tempo e o seu desconforto interior constitui uma oportunidade de reflexão.

Talvez o primeiro livro que o tenha referenciado a uma audiência mais vasta tenha sido “O homem sem inconsciente. Novas figuras da clínica psicanalítica” (2010), onde explorava o nexo entre inconsciente e discurso social. De facto, para Recalcati, “o inconsciente não é um lugar solipsista, mas uma força que estrutura os laços generativos, alargando e fertilizando o território da vida”. Na linha do ensinamento de Lacan, ele insiste em que o sujeito não é simplesmente o indivíduo considerado em si mesmo, mas é sim uma transindividualidade, na medida em que absorve, no seu ser, as imagens, as palavras, os ideais, as expectativas, os mitos, os medos e os desejos que habitam o mundo dos outros. São os laços e as pertenças que iluminam a direção da vida de um sujeito. O que é o homem sem inconsciente? É não só aquele que interrompeu o contacto com o inconsciente, mas que se afunda também numa espécie de anulação niilista, atomizando-se radicalmente da rede social. Estamos, por isso, ainda mais sós, mais isolados, mais entregues ao abandono.

o programa de Massimo Recalcati tem sido reabrir uma linha de pensamento sobre a família, interrogando a função do pai e da mãe e o que significa ser filho

Recalcati estabelece uma diferença substancial entre “a falta” e “o vazio”. A “clínica da falta” centra-se na abordagem ao desejo omitido ou cancelado e ao seu regresso através da dor que a divisão do sujeito provoca. A “clínica da falta” procura identificar aquilo que faltou (ou ainda falta) para nos permitir ser e corresponde a um modelo clássico que está a ser substituído por outro, o do vazio. Isso é bem visível, por exemplo, no tipo de sintomatologias emergentes: as anorexias, as bulimias, as depressões, os ataques de pânico, as toxicomanias… Estes novos sintomas não se enquadram no fenómeno do regresso do desejo recalcado, mas assistimos à desarticulação entre falta e desejo. O vazio que deflagra já não tem que ver com o outro e com a sua ausência anotada pelo desejo. Simplesmente a existência deixa de ser experimentada como abertura, desejo, transcendência. É como que induzida a fechar-se sobre si mesma, a consolidar-se numa forma extrema de inconsistência do sujeito, expressa depois numa angústia sem medida e sem nome.

Por tudo isto, desde o diagnóstico realizado no volume ‘O homem sem inconsciente’ (2010), o programa de Massimo Recalcati tem sido reabrir uma linha de pensamento sobre a família, interrogando a função do pai e da mãe e o que significa ser filho. Não podemos viver bem as passagens intergeracionais sem uma compreensão justa do jogo arquetípico que se estabelece entre estas figuras, que a nossa contemporaneidade apressadamente pretende declarar superadas. Obras como “O Que Resta do Pai? A Paternidade na Época Hipermoderna” (2011), “O Complexo de Telémaco. Pais e Filhos Depois do Crepúsculo do Pai” (2013), “As Mãos da Mãe. Desejo, Fantasmas e Herança do Materno” (2015) ou “O Segredo do Filho. De Édipo ao Filho Reencontrado” (2017) são excelentes achas para uma reflexão necessária. A experiência do amor e da esperança encarna-se na família de uma forma irremovível, que precisamos redescobrir.

Dom José Tolentino Mendonça
(iMissio)

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